O Amanuense Belmiro
Texto
Análise
Publicado em 1937, O Amanuense Belmiro, do mineiro Cyro dos Anjos (1906-1994) é um dos mais importantes romances brasileiros da primeira metade do século XX, ao lado de São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos (1892-1953), e Os Ratos (1935), de Dyonélio Machado (1895-1985).
Em forma de diário, trata de opiniões, memórias e experiências do funcionário público Belmiro Borba. Belmiro é homem de origem rural e postura pacata, para quem a vida em Belo Horizonte mostra-se sedutora e indevassável. O pêndulo entre comoção e perplexidade dá o tom sentimental da narrativa, marcando os voos metafísicos do protagonista e suas crises de nostalgia da vida na fazenda e na cidadezinha natal, Vila Caraíbas. Ao longo do diário, Belmiro dialoga com os poemas de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). À maneira da Itabira de Drummond, o espaço de sua primeira formação permanece como “um retrato na parede”, que se interpõe aos episódios urbanos. Também, como “atmosfera moral”1, mantida na casa da rua Erê por suas duas irmãs. Francisquinha é portadora de deficiência mental, e Emília é “esquisita”, inadequada à urbanidade, porém funcional o bastante para manter, em sua diligência doméstica interiorana, a “presença vigorosa e viril” do núcleo familiar perdido.
Da vida como burocrata da “Seção de Fomento Animal”, ligada à Secretaria de Agricultura do Estado, sabe-se pouco. O escritório sofre de uma crônica falta de serviço. Nas palavras de Belmiro: “[...] jamais conheci ficção burocrática mais perfeita que a Seção de Fomento...”2 e “não fomenta coisa alguma, senão o meu lirismo”3. Nesse ambiente, destacam-se as personagens que constituem o núcleo da vida de Belmiro: o colega de repartição, Glicério, rapaz novo e de boa família à espera de posição melhor na máquina pública e o filósofo nietzschiano Silviano, de orientação política reacionária cuja vida divide-se entre família, amantes e elucubrações de grandeza estapafúrdia. Já o acanhado revolucionário Redelvim, antigo colega de estudos, contrasta com o corretor de seguros Florêncio, de despreocupação cultivada pelo chope. Há, também, a secretária Jandira, mulher em crise com sua emancipação. O grupo oferece distração para a vida monótona de Belmiro, dividida entre casa e repartição.
Com os conservadores Glicério e Silviano, Belmiro compartilha duas preocupações: o amor e a filosofia. O primeiro manifesta-se durante o carnaval de 1935, quando Belmiro – envolvido na confusão do bloco e entorpecido de lança-perfume – tem contato com uma moça chamada Carmélia Miranda. É a personificação do amor platônico. Amor inalcançável, irmão das elucubrações metafísicas que dedica à vida, que logo se torna passatempo frívolo. Da prepotência de Silviano, Belmiro extrai um contraponto a seu acanhamento intelectual. Tem acesso, acidentalmente, ao diário do amigo e descobre nele a obsessão pelo mito fáustico (“O eterno, o Fáustico – o amor (vida) estrangulado pelo conhecimento”4). Aproveitando-se da informação, estabelece um contato mais íntimo com Silviano, que lhe empresta a filosofia para tentar compreender a si mesmo. Jandira e Redelvim representam a ala progressista de suas relações. Redelvim força o olhar do amanuense para questões sociais, com destaque para sua prisão por atividade subversiva no levante comunista de 1935. Jandira, por sua vez, leva-o a refletir sobre a condição problemática de uma mulher independente, instalada em ambiente conservador, que se ressente de autocompreensão. As idas e vindas desse grupo compõem a ficção existencial de Belmiro.
No ensaio Sobre o Amanuense Belmiro5, o crítico Roberto Schwarz (1938) assinala contradições na narrativa. Observa o conflito urbano inerente às personagens nas primeiras páginas do diário e o sentimentalismo nostálgico que suscitam. Conclui que a visada conciliatória de Belmiro mantém a luta social cristalizada e marca uma perspectiva específica desses conflitos. “O romance da urbanização”, diz o crítico, “que por sua natureza deveria ser dramático”, isto é, expondo e precipitando os conflitos inerentes à vida econômica e social na cidade moderna, “pode tornar-se lírico na perspectiva intermediária do burocrata”6. Belmiro, como herdeiro de uma decadente linhagem de proprietários de terra, os Borba, ainda sustenta os privilégios da classe dominante, para a qual as abstrações da luta social não interessam. Estas concorrem, para a paralisia do protagonista, índice da ordem social que o sustenta.
Escrito num momento de redefinição e conflito na história brasileira, O Amanuense Belmiro está entre os chamados “romances da urbanização” da primeira metade do século XX. É, talvez, seu mais típico exemplar. Trazendo ao primeiro plano um “fazendeiro do ar”, Cyro dos Anjos lança um olhar crítico ao conservadorismo da modernização da sociedade brasileira. Capta-a na passagem da autocracia latifundiária para a heterogeneidade urbana. Entre o desejo do novo e a nostalgia do velho, o romance traz a imobilidade que marca a sociedade brasileira, imune ao ímpeto conciliador do perplexo protagonista.
Notas
1 ANJOS, Cyro dos. O amanuense Belmiro. São Paulo: Editora Globo, 2006. p. 20.
2 ANJOS, op. cit., p. 35.
3 ANJOS, op. cit., p. 61.
4 ANJOS, op. cit.,p. 62.
5 SCHWARZ, Roberto. Sobre o amanuense Belmiro. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1978. (Clássicos Latino-Americanos.)
6 SCHWARZ, op. cit., p. 20.
Fontes de pesquisa 4
- ANJOS, Cyro dos. O amanuense Belmiro. São Paulo: Editora Globo, 2006.
- GIL, Fernando Cerisara. O romance de urbanização. Porto Alegre: Edipuc/RS, 1999.
- GIL, Fernando Cerisara. O romance de urbanização: a modernidade a contrapelo. In: Organon, Porto Alegre, v. 15, n. 30-31, 2001. Disponível em: < http://seer.ufrgs.br/index.php/organon/article/view/29715/18372 >. Acesso em: 30 out. 2014. p. 79-86
- SCHWARZ, Roberto. Sobre o amanuense Belmiro. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1978. Coleção Clássicos Latino-Americanos.
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O Amanuense Belmiro.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra69168/o-amanuense-belmiro. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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