Rio, 40 Graus
Texto
Rio, 40 graus (1955) é o primeiro longa-metragem de Nelson Pereira dos Santos (1928). Considerado um dos marcos inaugurais do cinema brasileiro moderno, é precursor do cinema novo, junto com O Grande Momento (1958), de Roberto Santos (1928-1987). O filme narra a vida cotidiana da cidade do Rio de Janeiro, suas contradições econômicas e camadas sociais. Nelson Pereira dos Santos propõe um cinema oposto ao projeto da Companhia Vera Cruz. Em Rio, 40 Graus, a precariedade na produção é um dado estético, inspirado no Neo-Realismo italiano. A filmagem acontece fora dos estúdios, com a câmera na rua, e utiliza atores não profissionais.
Em um domingo, cinco meninos da favela dirigem-se a diferentes regiões da cidade, para vender amendoins. Zeca, Sujinho, Jorge, Paulinho e Xerife interligam as histórias enfocadas, percorrendo cinco pontos turísticos: Copacabana, o Pão de Açúcar, o Corcovado, a Quinta da Boa Vista e o Estádio do Maracanã. Além de tentar garantir o sustento, eles decidem acumular dinheiro para comprar uma bola de futebol. Jorge também precisa vender o suficiente para comprar remédios para a mãe doente. Ele vai até Copacabana, leva um esbarrão e sua lata de amendoins cai no mar. Sem a mercadoria para vender, Jorge passa a pedir esmolas e consegue dinheiro, mas outros meninos tentam roubá-lo e, ao se desvencilhar deles, é atropelado. Paulinho vai até a Quinta da Boa Vista e sua lagartixa, Catarina, foge para o zoológico. Ele a recupera, mas o guarda do lugar expulsa-o e arremessa seu bichinho de estimação em um serpentário. Resignado, Paulinho parte para o Maracanã, onde encontra o malandro Miro [Jece Valadão (1930-2006)] e seu comparsa Zé [Zé Kéti (1921-1999)] que, ansiosos para entrar no estádio e assistir ao jogo, tomam todo o dinheiro do garoto e vendem os amendoins restantes. Zeca, por sua vez, decide ir até o Corcovado, mas é notado pelo explorador de menores que ali trabalha, um velho inescrupuloso que o persegue, forçando-o a uma fuga arriscada. Já Sujinho, sem dinheiro e sem amendoim, é escoltado até sua casa por um policial. Xerife se sai bem nas vendas e consegue entrar no Maracanã, após driblar a segurança. Ele e Zeca terminam o dia contentes por terem conseguido o dinheiro.
Personagens secundários e outras histórias são contadas paralelamente. A que sublinha o contraste na carreira de dois jogadores, a revelação de Foguinho para o futebol e a decadência de Daniel. Há, também a gravidez de uma migrante nordestina, cujo namorado hesita em firmar compromisso, e a chegada de um coronel do interior para visitar o Corcovado.
As cenas iniciais apresentam a ideia de um mosaico social, uma coletividade em cena. Nela, os pobres se destacam pelo vigor dos gestos, fala particular e ações destemidas. O filme se abre ao som de “A Voz do Morro”, de Zé Kéti, com um plano aéreo sobre a Baía da Guanabara. Os letreiros informam: “A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em Rio, 40 Graus”. Vemos a cidade, as casas, o Corcovado, o Maracanã, até que o longo plano dá lugar ao sobe-e-desce de pessoas no Morro do Cabuçú: crianças e mulheres com latas d’água na cabeça, homem com uma ferramenta, moça apressada, mãe conduzindo seu filho.
Essas cenas destacam os personagens principais e sintetizam o estilo de encadear uma história à outra, um personagem a outro. O recurso mais utilizado é o da profundidade de campo, com um episódio acontecendo em primeiro plano e outro despontando em segundo. Terminado o drama do primeiro plano, a câmera permanece estática ou esboça um travelling e enfoca outro personagem ao fundo. Quem está em primeiro plano sai do quadro para que outra história seja abordada.
A vontade de compor um painel da cidade transparece na visão aérea que abre e encerra o filme, como se o ponto de vista do narrador fosse privilegiado e onisciente. O efeito de conjunto é notável, original na capacidade de conectar setores distantes – a praia e a favela, as classes sociais, a zona norte e a zona sul.
Segundo a pesquisadora Mariarosaria Fabris, a importância de Rio, 40 graus dá-se na seguinte medida: “de um lado, vinha confirmar o interesse da crítica pelo cinema brasileiro (...); de outro, apontava a jovens realizadores um novo caminho a ser seguido, que desembocará no Cinema Novo”. Para a crítica, o ponto mais polêmico do filme é “a contraposição maniqueísta entre ricos e pobres, sempre apresentada de modo a ressaltar os defeitos dos primeiros e as qualidades dos segundos”. Segundo ela, no filme Nelson compõe o painel sócio-étnico da cidade: “lumpesinato, proletariado, classe média, burguesia, pretos, brancos, mulatos, cariocas, nortistas, baianos, portugueses, turcos e turistas (paulistas, americanos, alemães e japoneses)”.
O filme repercute bem1 e sua interdição pela censura, mobiliza protestos contra a intolerância. Muitos intelectuais posicionam-se a favor da liberação do filme, como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Afonso Frederico Schmidt (1890-1964) e Jorge Amado (1912-2001), que declara contra a censura: “Rio, 40 graus precisa ser exibido. Porque é um bom filme, obra de talento e de sensibilidade, honesto, brasileiro, patriótico [...]”2. Sobre o estilo, o crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977) afirma:
A concepção de Rio, 40 graus exigiu uma variedade de situações e uma vivacidade no tratamento que certamente contribuíram para escamotear, até certo ponto, as deficiências que lá se encontravam, porém sem tempo de se manifestarem plenamente.
As restrições serão amenizadas pelos jovens do cinema novo, que recuperam outros aspectos do filme. Glauber Rocha destaca Rio, 40 graus, como “[...] o primeiro filme brasileiro verdadeiramente engajado.” Sobre Nelson Pereira dos Santos, sentencia:
Partindo do zero, porque Favela dos meus amores era o realismo ingênuo da favela; porque os filmes urbanos eram sinceros, mas não situavam seus personagens na contradição da sociedade (Amei um bicheiro e apenas tenuemente Agulha no palheiro) [...], o jovem [Nelson Pereira] não se interessava pela experiência formal: seu lirismo, se discursivo nas relações miseráveis de um garoto pobre com uma lagartixa, era autêntico3.
Em 1956, ano seguinte ao lançamento e liberação pela censura, Rio, 40 Graus ganha o Prêmio Saci, de Menção Especial para o diretor, e o Prêmio Governador do Estado, de Melhor Roteiro, ambos em São Paulo. No festival do Distrito Federal, recebe os prêmios de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator (Jece Valadão) e Melhor Argumento.
Notas
1 Jornalistas e intelectuais reagiram à interdição do filme com veemência. é o que se vê em artigos e matérias com títulos como “Arbitrário e Insustentável o Ato do Coronel Côrtes” (Imprensa Popular), “Rio, 40 graus deveria ser exibida nas escolas públicas” (Última Hora), “O filme censurado” (Correio da Manhã). Em artigo no Última Hora, em setembro de 1955, Fernando de Barros afirma que o Rio estava “em plena batalha” por causa do filme, e que “todos os cronistas especializados malham o coronel Côrtes como se malha um Judas.” Segundo Marcus Pereira, no Jornal de Debates, o filme “provocou a maior polêmica de que se tem notícia na crônica cinematográfica do país”.
2 AMADO, Jorge. O Caso de Rio, 40 Graus. Jornal da Imprensa Popular, 27 set. 1955.
3 ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 105.
Fontes de pesquisa 5
- AMADO, Jorge. O Caso de Rio, 40 Graus. Jornal da Imprensa Popular, 27 set. 1955.
- FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira do Santos: um olhar neo-realista? São Paulo: Edusp: Fapesp, 2004.
- MIRANDA, Luiz Felipe. Dicionário de cineastas brasileiros. Apresentação Fernão Ramos. São Paulo: Art Editora, 1990, 408 p.
- ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
- SIMÕES, Inimá. Roteiro da intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: Senac, 1999.
Como citar
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RIO, 40 Graus.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra68261/rio-40-graus. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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