A Lira do Delírio
Texto
A ideia inicial deste quarto longa-metragem de Walter Lima Jr. (1956), desenvolvida em 1972, consiste em fazer um musical sobre a vida do compositor José de Assis Valente (1911-1958). O filme se chamaria Salve o Prazer e traria cenas de Carnaval rodadas in loco. No Carnaval do 4º centenário da cidade de Niterói, em 1973, Walter Lima Jr. vai para o meio dos blocos e capta as imagens que servirão de ponto de partida do filme. Cada ator representa, com sua fantasia e personagem, a história contida na letra de uma música de Carnaval - por exemplo, o personagem de Claudio Marzo teria saído do samba Camisa Listrada, e o de Antônio Pedro, da marchinha Mamãe Eu Quero. Nas filmagens, contudo, os atores se entregam à folia e o diretor tem dificuldade em construir a narrativa como havia programado. Resta-lhe acompanhar a interação dos atores com os demais foliões em meio à energia do Carnaval de rua. "Quando acabou, eu me vi com um material nas mãos que tinha elementos para um drama, por exemplo, mas não para um musical. Era outra coisa, outro clima".
Lima Jr. deixa o projeto de lado, o que coincide com o início de seu trabalho na televisão, realizando documentários para o programa Globo Repórter. A obra só é retomada em 1976. Ao recomeçar a filmar, o diretor se dá conta de que está fazendo "um filme sobre o tempo", ou "sobre a relação entre as pessoas e o tempo". Reconhecendo que se trata de uma premissa vaga demais, ele constrói uma estrutura que não chega a ser um roteiro no sentido convencional (com princípio, meio e fim dispostos de forma clara e linear), mas módulos narrativos que comportam várias possibilidades de trama. Seu intuito é ter, para as filmagens, uma estrutura de ficção que seja flexível, de modo a articular com diferentes hipóteses na montagem. Embora o filme, em sua versão final, se apresente como um thriller policial com personagens e dramas centrais mais ou menos definidos, as várias peças de sua intriga poderiam se recombinar na montagem dando origem a uma nova história.
Na trama assim desenvolvida, a protagonista é Ness Elliot (Anecy Rocha, em seu último papel), dançarina de cabaré que, enfrentando dificuldades financeiras, aceita transportar drogas de São Paulo para o Rio de Janeiro. Ao chegar à estação de trem, esbarra acidentalmente em dois homens e, na confusão, um deles leva a bolsa com a mercadoria ilícita. O filho de Ness é raptado por bandidos que a pressionam à recuperar a droga. Auxiliada por um repórter policial que banca o detetive nas horas vagas (Paulo César Pereio), Ness inicia uma busca pelo bebê. Enquanto isso, deixa-se seduzir por um galã conquistador (Cláudio Marzo, 1940-2015), misto de gigolô e homem de negócios, que promete ajudá-la, mas que não passa de um golpista que, além de casado com uma mulher rica e mais velha, está por trás do rapto do bebê. Completando a rede de personagens, há o marginal que trabalha para Marzo e executa o sequestro (Tonico Pereira, 1948), um médico envolvido no tráfico ilegal de crianças para o exterior (Antônio Pedro, 1940), um homossexual que mora na Lapa e frequenta a vida noturna do bairro (Othoniel Serra, o homem que ficou com a bolsa de Ness na estação de trem) e um motorista de táxi que sempre reclama do aumento do preço da gasolina (Pedro Bira). Todos estão enredados na mesma teia de acontecimentos, tendo como ponto de encontro o bairro boêmio da Lapa, cujos arcos, bondinhos, becos e casas noturnas são transformados em autêntico cenário de film noir pela iluminação expressionista inspirada numa parcela do cinema americano clássico.
A montagem cria uma temporalidade cíclica que embaralha cronologia e significados, colocando tudo num plano ambíguo, entre realidade e magia, concreto e delirante. Retrata um mundo em que as pessoas vivem no presente imediato, agindo por paixão e impulso, sem questionar as ações - criaturas perdidas "entre vielas sórdidas e dancings baratos", protagonizando "atrações dignas de manchete de primeira página em jornais sensacionalistas". Os dois eventos dramáticos principais (o assassinato do homossexual e o sequestro do bebê) não constituem um enredo, mas um pretexto narrativo para situações em que os atores improvisam mais do que representam. O que importa é menos a narrativa e a intriga do que o clima e a vivacidade das situações. A maioria dos personagens tem o nome dos próprios atores que os interpretam, demonstrando o desejo do diretor de misturar ficção e realidade, de jogar menos com a construção psicológica dos personagens do que com os sentimentos reais de cada ator, e de registrar diálogos em que prevalece a fala espontânea, o linguajar despojado. Lima Jr. afirma que durante a filmagem "descrevia a cena para o ator, dizia mais ou menos qual era o diálogo e pedia que ele inventasse em cima. Nada de fala decorada".
O título do filme é tirado de um bloco de foliões de Niterói. As cenas de Carnaval vistas no início, e que retornam em diferentes momentos do filme, funcionam como uma memória coletiva dos personagens. Num passado recente, todos estiveram juntos no mesmo bloco, imersos no mesmo mar de euforia. Alguns anos depois, cada um enfrenta seu destino. Mas Lima Jr. não trata as imagens de Carnaval como um paraíso perdido de alegria e comunhão em contraste com o sentimento de danação que paira sobre a trama do presente. À medida que o filme avança e novas imagens do Carnaval são mostradas, constata-se que a violência já se encontrava na folia popular: em algumas das tomadas feitas no bloco de rua, o clima de celebração dionisíaca é interrompido por focos de confusão ou comportamentos agressivos de alguns foliões (há um momento em que Anecy Rocha é tirada às pressas do meio de um grupo de homens que pareciam prestes a rasgar sua roupa e violentá-la); o clima é tenso, há uma brutalidade latente.
A Lira do Delírio começa com uma sobreimpressão do rosto de Pereio, filmado em plano fixo frontal, com imagens de Carnaval captadas com câmera na mão. O sorriso do ator aos poucos vai se transformando numa expressão de cansaço e desencanto. Em off, ele diz: "Quando te procuro nesses carnavais, eu reaprendo que a vida se aproveita enquanto dura; que a vida dura só um dia, um porre, um gesto, um gemido, um canto, um pulo, um delírio". Sua fala destaca a tentativa de viver no presente puro, de fazer do êxtase momentâneo a única coisa à qual se ater. Mas aponta também a efemeridade da alegria carnavalesca, isto é, a consciência de que, passada a festa, vem a quarta-feira de cinzas. O comentário em off já se situa num tempo futuro: o tempo da resignação e da ressaca.
Depois da sobreimpressão, as imagens de Carnaval continuam. Tanto Pereio quanto Anecy aparecem brincando em meio ao povo. O formato documental adotado na captação, bem como o caráter imersivo das cenas - que magnetizam o espectador e fazem sentir a pulsação das ruas lotadas de foliões -, cria uma proximidade com a realidade física daqueles eventos. A textura e as cores dessas cenas, feitas em 16mm, diferem do restante do filme (rodado em 35mm), reforçando o intervalo de tempo transcorrido entre os dois momentos da filmagem (1973 e 1976). Os próprios atores, ao ressurgirem com aparência já modificada, com novo corte de cabelo, ligeiramente mais velhos, acusam essa passagem dos anos (são corpos atravessados pelo tempo).
O fato de o filme incentivar e valorizar a espontaneidade, contando com muita improvisação e imagens captadas em regime de reportagem televisiva, não significa que se tenha abdicado da encenação elaborada em outros momentos: alguns planos dentro do cabaré têm grande complexidade e virtuosismo de iluminação e movimentos. Já na cena em que Pereio aborda o bandido vivido por Tonico Pereira numa rua do Rio de Janeiro, as duas facetas da mise en scène de Lima Jr. - tanto sua força documental quanto seu domínio das técnicas de dramatização cinematográfica - misturam-se num agitado plano-sequência.
A Lira do Delírio ganha cinco prêmios no Festival de Brasília de 1978: melhor direção, fotografia (Dib Lutfi), montagem (Mair Tavares), atriz (Anecy Rocha) e ator coadjuvante (Paulo César Pereio). Chega aos cinemas e recebe críticas favoráveis dos veículos de imprensa. Segundo José Haroldo Pereira, em texto publicado em Filme Cultura, Walter Lima Jr. opera a: (...) recriação em termos cinematográficos do espírito do Carnaval, tanto pelo clima de amargura misturada com euforia que envolve os personagens, como pela exuberância e ritmo da encenação - que tem o colorido, a vibração, a coreografia, a sensualidade e a sonoridade dessa grande festa popular que explode todo ano .
Quase sem exceção, as críticas destacam o trabalho de Anecy Rocha, que Rubem Biáfora, no jornal O Estado de S. Paulo, define como "um misto de Ingrid Bergman dos primeiros tempos e da hoje esquecida Marian Nixon dos últimos tempos do mundo primeiro dos sonoros". Sérgio Augusto, em IstoÉ, afirma que o filme guarda "imagens preciosas" de Anecy Rocha, a quem Walter Lima Jr. procura dar uma "segunda vida" por meio da ilusão ótica do cinema. Ele termina o texto elogiando o retrato fidedigno da realidade carioca, "a sufocante sordidez do bas-fond carioca nunca foi capturada com tanta convicção, da Lapa de Madame Satã às margens suburbanas sacolejadas pelos trens da Central".
Fontes de pesquisa 14
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Como citar
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A Lira do Delírio.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67324/a-lira-do-delirio. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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