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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

Gamal - O Delírio do Sexo

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 26.12.2023
1969
Análise

Texto

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Análise
Gamal, o Delírio do Sexo é o primeiro longa metragem de João Batista de Andrade (1939), depois de Liberdade de Imprensa (1966/1967), que marca época em sua defesa da democracia. Rodado de maneira rápida, com orçamento e equipe reduzidos, Gamal é a resposta do diretor, utilizando elementos da contracultura, ao momento político vivido pelo Brasil na época da realização do filme, o da ditadura militar. A obra se insere no chamado Cinema Marginal, udigrudi ou da Boca do Lixo paulista, rótulos dos quais o diretor sempre faz questão de se desvencilhar. Gamal rompe com convenções narrativas e estéticas, além de ter um carga política explicita devido ao conteúdo que mescla apologia à  anarquia e a crítica ao poderio econômico dos meios de comunicação de massa.

A história de Gamal, o Delírio do Sexo gira em torno de um casal: Jorge [Paulo César Pereio (1940)] e Luisa [Joana Fomm (1940)]. Jorge é um jornalista em crise profissional e amorosa que tenta abandonar todas as coisas que o cercam, mas é impedido por uma série de imposições. O caminho deles cruza-se então com Gamal [Lorival Pariz (1934-1999)], um andarilho, misto de homem das cavernas e lunático tarado, que é subitamente elevado ao patamar de aristocrata.

Descrever o filme dessa maneira pode ser um exercício traiçoeiro ao espírito de dilaceramento dramático que domina a obra, pois impõe uma coesão narrativa formal que ela rejeita. Isso porque o filme não passa por um encadeamento narrativo ordinário. A maioria das sequências estão em voz off que descrevem de maneira confusa, os sentimentos e as ações dos personagens, os quais não possuem um perfil psicológico definido, tampouco razões claras de ser. A interação entre os atores baseia-se mais no improviso do que nas marcações convencionais de cena; as ações, anárquicas e desorganizadas, tem o objetivo de envolver o espectador num jogo sensorial com excessos de toda natureza. 

Três atores coadjuvantes [Fernando Peixoto (1937-2012), Flávio Santiago e Samuel Costa] interagem o tempo todo com os personagens principais e desencadeiam - e por vezes forçam - as reações destes. Agindo ora como uma espécie de coro grego orgiástico a maneira de José Celso Martinez (1937), ora como os Três Patetas, o trio toma o corpo dos atores como mera superfície sobre a qual eles despejam sua elegante fúria. Aos atores, transformados assim em zumbis ou joguetes, só lhes restam obedecer e se deixarem levar por essa sofreguidão excessiva. Gamal é um atracamento constante entre "coro" e personagens, um trote físico ao qual o corpo dos atores se entrega de maneira concupiscente e brincalhona. 
A composição sonora do filme também auxilia na criação de um ambiente anárquico e perturbador, pois não é uma trilha convencional. São excertos de música concreta, barulhos, gemidos, distorções sonoras, sons repetitivos. Assim como não existe um roteiro, a trilha do filme não obedece a nenhum preceito narrativo formal.
 
A interação entre equipe de filmagem e a cidade é também uma das singularidades de Gamal.  Realizado em um período de repressão militar e de direitos civis cerceados, se expressar é um exercício difícil. O filme desenvolve um processo de filmagem que engloba os transeuntes à plástica da imagem, tornam-se, assim, figurantes ou coadjuvantes do filme pelo simples fato de acompanharem a ação, ora voltando a cabeça para dar mais atenção a cena ou reunindo-se em volta dos atores para observar. Não é por acaso que Gamal tem uma grande influência documental na participação de Jorge Bodansky, que além de registrar os atores pelas ruas de São Paulo, também explora as transformações que a cidade sofria no final dos anos 1960.

Esse lado documental torna evidente no momento em que o "coro" endiabrado transforma o vagabundo Gamal num senhor aristocrata. A brincadeira de passos de capoeira se  transforma-se numa sessão de "tortura" cujos instrumentos são notas de dinheiro e, mais tarde, a aparelhagem de um estúdio de TV. Enquanto ainda estão na rua,  os passantes tornam-se espectadores do trote do qual Gamal é vítima, tendo por vezes que ceder o espaço para os atores evoluírem. Esse trecho traz também outro tema importante do filme: a crítica aos meios de comunicação como construtores de imagens, que já havia sido tema de um curta metragem de Andrade, O Filho da Televisão (1968), um dos episódios do longa Em cada coração um punhal (1969).

A recepção crítica de Gamal, o Delírio do Sexo à época da sua estreia surpreende, sobretudo o seu autor, que lembra que o filme foi bem recebido pela crítica conservadora, e atacado pela crítica e ligada aos movimentos mais progressistas do cinema, como o texto de José Carlos Avellar publicado no Jornal do Brasil. A crítica de Avellar ressalta o pouco interesse estético e simbólico que o filme apresenta e considera que este cinema, que "dispensa a palavra, que recusa todo e qualquer comportamento racional, que busca uma apreensão sensorial do mundo, cria uma estrutura por si só impotente"1. João Batista se recorda do amigo Joaquim Pedro de Andrade tentava convencê-lo de que a "irracionalidade não só não levava a nada, como era um perigo"2.

Gamal, o Delírio do Sexo é um filme desconcertante, que radicaliza a experiência do cinema de baixo orçamento e passa para a história como um filme atípico, não enquadrado em nenhuma classificação do panorama cinematográfico.

Notas:
1. AVELLAR, J.C. "As cadeiras quebradas". Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1970. 
2. Depoimento do diretor a Maria do Rosário Caetano, in João Batista de Andrade. Alguma solidão e muitas histórias. São Paulo : Imprensa Oficial, 2004, p. 139.

Fontes de pesquisa 6

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  • AVELLAR, J.C. As cadeiras quebradas. Jornal do Brasil, 14 dez. 1970.
  • AVELLAR, J.C. O Cinema Dilacerado. Rio de Janeiro: Alhmabra, 1986.
  • CAETANO, M. R. João Batista de Andrade. Alguma Solidão e Muitas Histórias. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004.
  • FREIRE RAMOS, A. Sob o signo da estética do lixo: as parcerias de Fernando Peixoto com Maurice Capovilla e João Batista de Andrade, Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, vol. 2, ano II, n° 3, jun./agos./set. 2005, Universidade Federal de Uberlândia - UFU.
  • RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968-1973): a representação em seu limite. São Paulo: Brasiliense, 1987.
  • TORRES, A. Apenas exceção, Visão, 20 fev. 1978.

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