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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

O Quarto

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 19.04.2023
1968
O Quarto é o segundo longa-metragem escrito e dirigido por Rubem Biáfora  (1922-1996), que se notabiliza como crítico de cinema, atividade que exerce no jornal O Estado de S. Paulo, dos anos 1950 à década de 1980. Biáfora privilegia, como crítico, um estilo afinado com os melhores exemplos dos grandes autores do cinema de Hollywood ou os cineast...

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Análise

O Quarto é o segundo longa-metragem escrito e dirigido por Rubem Biáfora  (1922-1996), que se notabiliza como crítico de cinema, atividade que exerce no jornal O Estado de S. Paulo, dos anos 1950 à década de 1980. Biáfora privilegia, como crítico, um estilo afinado com os melhores exemplos dos grandes autores do cinema de Hollywood ou os cineastas modernos não dispostos a questionar com mais ênfase os padrões industriais de fotografia e montagem, tendo relações tensas com o cinema novo. Seu primeiro longa, Ravina (1958) - com forte influência de O Morro dos Ventos Uivantes (1939), de William Wyler (1902 - 1981) -, é claramente alinhado com esse posicionamento crítico.

Se em seu filme de estreia Biáfora busca construir um ambiente fantasmagórico, O Quarto é a crônica existencial de um trabalhador comum, funcionário de escritório da classe média baixa paulistana. Há um deslocamento temático aliado a um salto de qualidade no estilo e na criação de uma atmosfera.

O filme se estende na exposição do cotidiano apagado de Martinho (Sérgio Hingst), o protagonista, que entra na casa dos 40 anos num emprego medíocre, solitário, sem outros interesses ou preocupações fora a busca de algumas poucas e vulgares excitações - sobretudo sexuais - que lhe aliviem a onipresente ameaça de vazio. O trabalho no escritório de contabilidade é rotineiro e sufocante, e a relação com os colegas varia entre a distância, a exploração mesquinha ou, no melhor dos casos, uma camaradagem tão protocolar que começa e termina com o bater do ponto.

Fora do escritório, há a rua e a promessa de liberdade na perambulação noturna pela cidade. Mas, enquanto a esperança fica no sonho entrevisto pelas janelas de um restaurante elegante, a realidade é uma via-crúcis repetida sem entusiasmo, por bares baratos, casas de stripteases e calçadas do baixo meretrício. Nos dias de folga, é o futebol - na televisão do boteco, no estádio ou no rádio - ou a visita à irmã casada, com suas cobranças ao irmão celibatário.

Essa condição precária, de um desespero brando, mas inexorável, tem sua expressão mais forte no espaço que dá título ao filme. O quarto do protagonista é composto de detalhes e explorado: as paredes nuas, os móveis gastos e impessoais, a lâmpada crua pendendo do teto criam, ao contrário de um aconchego doméstico, um clima de prisão. A câmera explora o espaço exíguo em movimentos que não têm para onde ir; a lâmpada é um ponto fixo, obsessivo, para o olhar do personagem. O tempo que transcorre no quarto é estendido pela inserção de flashbacks melancólicos (o diagnóstico tardio da doença na vista, as brigas em quartos coletivos de pensão, o descaso da amante já envelhecida).

A tensão contida nessa existência emparedada num quarto de aluguel barato traz evocações dostoieviskianas (Memórias do Subsolo, Crime e Castigo), da tradição expressionista do "pequeno homem" ou da literatura existencialista, como em A Náusea, de Jean-Paul Sartre (1905 - 1980). Mas em O Quarto tudo está rebaixado e desvitalizado por uma vivência sem nenhuma grandeza.

O ponto alto do quarto como palco da tensão existencial de Martinho é a longa cena noturna que dá conta de sua relação com a prostituta que escolhe na rua. Apesar de ter sofrido cortes pela censura, a cena se mantém vigorosa. Como num palco, ou arena, eles entram separados sem se olhar ou se tocar, como que intuindo uma frustração que se confirma na sequência. A luz do quarto se acende e ele já começa a tirar a roupa, enquanto ela circula, examinando o ambiente.

A aproximação se faz num beijo abrupto, sôfrego, pontuado por um movimento de câmera que se avizinha de um close. A montagem em campo/contracampo alterna os parceiros, evidencia o desejo, e planos muito próximos destacam as carícias que percorrem corpos já desgastados. Os movimentos cessam quando ele depara com uma cicatriz de cesariana, que gera perguntas sobre filhos e idade, com respostas protocolares e disfarces. Os gestos que se seguem são delicados, mas são interrompidos pela lembrança sobre o preço do programa. O ato sexual é sugerido por um plano no qual se entrevê os pés do casal, pela porta do quarto.

Um corte seco leva a um desalentador momento pós-coito, com ele acordando e a descobrindo a lixar as unhas e a olhar o relógio. Ele tenta, de modo desesperado, uma nova investida, mas ela se recusa, dizendo que já está na hora de sua condução. Na penumbra, ele se levanta, alquebrado. Ambos trocam um olhar triste, que se torna um desafio, respondido com o pagamento pelos serviços sexuais prestados.

Já na rua, em silêncio, ele a conduz até um táxi. De volta ao apartamento, contempla, sem energia, a cama desfeita, as roupas jogadas. Um plano externo do prédio sugere uma metáfora da solidão no árido horizonte urbano. Ele abre a janela, junta as roupas espalhadas, joga os lençóis sujos atrás do sofá e gargareja, se preparando para mais um dia. Essa dissecação de um cenário a um só tempo social e pessoal ganha feição dramática particular na segunda metade do filme, quando Martinho se envolve, a partir de um encontro fortuito, nos limites da verossimilhança, com uma bela e elegante burguesa (Giédre Valeika).

O que para ela é capricho passageiro, para ele é um acontecimento definitivo: os sonhos realizados, a vida passada a limpo, o quarto pobre dando lugar à mansão, o lustre sofisticado no lugar da lâmpada nua, a amante jovem e rica abrindo-lhe o futuro. Deixa-se iludir, acreditando serem seus méritos que lhe franqueiam os salões da alta classe. A desgraça não tarda. Quando a amante se cansa do jogo, ele já pôs a perder o emprego e, visto da desolação de seu quarto, o futuro se anuncia ainda mais cinzento.

Em seu conjunto, O Quarto é consistente na pintura de um ambiente social, por meio do inventário - e mesmo da exploração plástica, graças à competente fotografia e ao trabalho de câmera - dos aspectos da vida material da classe média baixa paulistana. Essa exploração é feita em ritmo lento, adequado à composição de uma situação, mais do que à narração de uma trama. A concentração dramática só surge no movimento final, gerado pela fantasia de uma relação amorosa. Mas o que poderia ser a base para uma narrativa melodramática, ao estilo das telenovelas, na qual o amor vence as barreiras sociais, aqui serve para marcar diferenças intransponíveis. A figura apequenada do protagonista, sufocada por uma história e cotidiano medíocres, se perde em sua aventura entre os abastados. Sua performance é constrangedora, destoando do ambiente sofisticado em que adentra em condição precária. Em vez de salvação, o amor aparece como prolongamento e confirmação da longa exposição anterior de sua miséria social e existencial.

A crítica na imprensa é extensa, com muitas matérias positivas, mas quase sempre notas curtas dos colegas críticos, mais com adjetivos elogiosos do que análises do filme. Entre os poucos artigos mais analíticos, ainda que também curtos, destaca-se o de José Lino Grunewald (1931 - 2000), que inclui um elogio aos recursos estilísticos do filme anterior do diretor (Ravina, que fora duramente criticado por Paulo Emílio Salles Gomes). Quanto a O Quarto, o crítico comenta que "parece um filme do período do realismo francês do decênio de 1930", ou seja, um filme ultrapassado. Há ainda um apoio inusitado a Biáfora: Glauber Rocha (1939-1981) envia-lhe uma carta publicada no 27 de abril de 1969 em O Estado de S. Paulo, elogiando seu caráter autoral e sua disposição de mostrar São Paulo "sem retoques" e conclui dizendo não fazer sentido opor "cinema novo e cinema velho".
 

Fontes de pesquisa 4

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  • EWALD FILHO, Rubens. "Dentro do Quarto", A Tribuna de Santos. Santos, 23 mar. 1969.
  • GRÜNEWALD, José Lino. O Quarto. O Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 mar 1969.
  • LAURA, Ida. O quarto. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 20 nov. 1968.
  • ROCHA, Glauber. O quarto volta com apoio (carta enviada a Rubem Biáfora e publicada no jornal). O Estado de S. Paulo, 27 abr 1969.

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