Todas as Mulheres do Mundo
Texto
Todas as Mulheres do Mundo é escrito e dirigido por Domingos Oliveira (1936-2019). É o primeiro longa-metragem do diretor único com romance com uma comédia de comportamentos que leva para o cinema discussões como a revolução sexual feminina nos anos 1960.
A história se passa no Rio de Janeiro contemporâneo às filmagens, entre jovens de classe média. Edu [Flávio Miggliaccio (1934)], solteiro convicto, encontra Paulo [Paulo José(1937)], seu antigo colega de farras, que lhe conta sua história com Maria Alice [Leila Diniz (1945-1972)]. Essa história se divide em seis partes: "A conquista", "Primeiras consequências", "O bolo", "A reconciliação", "Outro bolo" e "Uma revelação". O filme abre com uma montagem em torno de uma narração em voz over do personagem Edu, que fala: "E a liberdade? O amor consome a liberdade. Castra a auto-iniciativa. Conduz à acomodação. Destrói a individualidade. Leva à fraqueza... Seja só. O homem mais forte é o mais só." Após ponderar sobre a impossibilidade de qualquer configuração amorosa, ele se pergunta: "E mesmo que fosse possível o amor, como escolher a mulher? As mulheres são muitas! Todas de diferentes formas, tamanho, cor, personalidade. Impossível escolher. Impossível escolher. Impossível escolher. Impossível escolher".
Paulo e Maria Alice se conhecem numa festa de Natal. Paulo se sente imediatamente atraído por ela, mas ela tem um noivo, Leopoldo [Ivan de Albuquerque (1932-2001)]. Após alguma insistência de Paulo, ela resolve sair com ele e, pouco após seu primeiro encontro, Paulo começa a inventar desculpas para não mais ver suas antigas parceiras sexuais. Eles ficam juntos até o dia em que Maria Alice tem de ir a São
Paulo visitar seu sobrinho e Paulo é convidado para uma festa só com mulheres. Ele termina por traí-la, e é flagrado por Maria Alice, que havia retornado mais cedo da viagem. Após um período separados, eles voltam a ficar juntos, mas repentinamente Leopoldo, ex-noivo de Maria Alice, morre. Ela fica muito abatida, mas decide reagir indo à praia, lugar que considera sua casa. No encontro de Paulo e Maria Alice na praia, eles resolvem ter filhos.
A personagem Maria Alice e sua intérprete Leila Diniz possuem muitas semelhanças: a inspiração de Domingos de Oliveira na ex-mulher foi de tal grau que as duas, muitas vezes, se confundem. Luis Carlos Merten (1945), em crítica no Diário de Notícias, afirma que o filme é uma declaração de amor à Leila.
Leila Diniz e Maria Alice são livres, sexuais, fiéis às suas paixões, intensas e solares. Ao fim do filme, Paulo fala que fazer amor com Maria Alice era "como dar uma volta ao mundo" e que "a alma dela era seu corpo". O escritor e crítico literário Paulo Hecker Filho (1926-2005), em artigo no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, escreve que Maria Alice reafirma a liberdade sexual conquistada pelas mulheres atuais e futuras.
A emancipação feminina é um tema subjacente ao filme, e questão relevante para a época. Na narração do início, Edu já expõe a questão: "Agora as mulheres resolveram ser independentes, o que complica as coisas de modo definitivo". Em certo momento, após receber uma crítica negativa de Maria Alice sobre seus escritos, Paulo fala: "mulher tem que ser burra". O que está implícito nessa fala é que a mulher dependente deve se comportar como burra, não expressar livremente suas opiniões; hipótese impensável no caso de Leila Diniz/Maria Alice. Ao posicionar de maneira reacionária a liberdade de Maria Alice e das outras mulheres com as quais se relaciona, Paula também é um representante de sua época, ao chocar-se e criticar os posicionamentos fortes e de igualdade exigidos por elas.
A habilidade de Mário Carneiro (1930-2007) como diretor de fotografia é uma das grandes qualidades do longa-metragem, que se impõe, em vários momentos, como um registro do cotidiano de uma geração. A montagem, feita por Raimundo Higino (1936), João Ramiro Mello (1934) e Paulo Gracel, é ágil, cheia de cortes rápidos, e se utiliza por vezes do faux-raccord1. O filme se utiliza ainda de recursos como o congelamento de imagens, a aceleração e desaceleração de movimentos (fast motion e slow motion), e o uso repetido de imagens em sequências como, por exemplo, a da festa em que Paulo conhece Maria
Alice e, também, a da festa final, com a casa repleta de crianças. Há ainda, logo no início, uma quebra das regras ilusionistas, com o ator Paulo José olhando diretamente a câmera. Esse modo moderno de construção da obra, que rompe com certas regras do cinema clássico, expressa na forma o conteúdo da narrativa cinematográfica: sua história sobre jovens que vivem um novo modo de se relacionar.
A recepção crítica varia entre o favorável e o entusiástico. Algo unânime é a comparação aos filmes da Nouvelle Vague francesa; elas apontavam os diretores Jean-Luc Godard (1930), François Truffaut (1932-1984), Phillippe de Broca (1933-2004) e Richard Lester (1932) como influências diretas. Ely Azeredo, um dos críticos a elogiar o filme, entre outros aspectos, pela sua capacidade de dialogar com o cinema europeu moderno.
A posição do longa-metragem em meio aos seus contemporâneos do Cinema Novo era a de adesão apenas parcial aos preceitos, já que o seu tema passava ao largo das questões políticas. Sobre isso, Ismail Xavier afirma em 1967 aponta que por isso, sofreu críticas por parte de diretores e críticos do movimento
Todas as mulheres do mundo traz na figura de Leila Diniz a imagem das mulheres de sua época para além da ficção, responsáveis debates acerca de mudanças sobre suas formas de se relacionar e sobre sua sexualidade.
Notas
1. faux-raccord é uma técnica de passagem de cenas utilizada no cinema que garante a descontinuidade, criando rupturas na linearidade da narrativa já que monta, em sequência, imagens que não tem necessariamente relação na ordem cronológica do filme
Fontes de pesquisa 11
- 55 ANOS de Todas as Mulheres do Mundo e o vazio de remakes desatualizados. Valkirias. 21 mar. 2021. Disponível em: https://valkirias.com.br/55-anos-de-todas-as-mulheres-do-mundo-e-o-vazio-de-remakes-desatualizados/. Acesso em: 19 nov. 2021.
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- AZEREDO, ELY. Olhar Crítico: 50 anos de cinema brasileiro. São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2009.
- CASTRO, RUY. Uma fábula amoral da Belle Époque: Todas as mulheres do mundo (18-05-2002). In Heloisa Seixas (org.) Ruy Castro, um filme é para sempre: 60 artigos sobre cinema. São Paulo, Companhia das Letras, 2006.
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- OLIVEIRA, Mayara Fior. O faux raccord e a montagem discursiva: O que é faux raccord? AVANCA Cinema. Capítulo II. 2019.
- SANTOS, J. F. Leila Diniz: Uma Revolução na Praia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
- XAVIER, I. Todas as mulheres do mundo. In: Artes, v. 2, n. 10, ago.-set. 1967.
Como citar
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TODAS as Mulheres do Mundo.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67253/todas-as-mulheres-do-mundo. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7