Clara Crocodilo
Texto
Histórico
Lançado em 1980, o LP Clara Crocodilo, álbum de Arrigo Barnabé (1951) e Banda Sabor de Veneno, é considerado um dos marcos iniciais da chamada vanguarda paulista, movimento que renova a cena musical da cidade de São Paulo por meio da produção independente de discos. Produzido pelo músico Robinson Borba, antigo parceiro de Arrigo, o álbum faz grande sucesso entre o público universitário, vendendo 4.500 cópias em um semestre, cifra considerável para uma produção desse tipo. Sua repercussão é igualmente positiva na imprensa, que o considera "uma revolução do ouvido",1 ou "a maior combustão criativa na música popular brasileira"2 da época. Porém, contrariando as expectativas do compositor e sua banda, não se torna um sucesso de massa nem chega a tocar nas rádios.
O desinteresse do grande público por Clara Crocodilo se deve, provavelmente, à sua proposta estética inovadora, que funde procedimentos composicionais da música de vanguarda erudita a referências da cultura pop, como anúncios publicitários, programas radiofônicos e histórias em quadrinhos. A combinação peculiar de elementos tão díspares faz com que o disco seja comparado ao álbum Tropicália, de 1968, igualmente considerado um marco de ruptura na música popular brasileira. Porém, se a inovação dos tropicalistas se dá sobretudo no plano poético, por meio de letras fragmentadas, citações e paródias, a de Clara Crocodilo é propriamente musical. Ao incorporar o serialismo3 e o atonalismo livre4 na composição de suas canções, Arrigo Barnabé e seus parceiros procuraram dar um passo à frente na "linha evolutiva"5 da MPB - que, apesar de todos os "avanços" introduzidos nas décadas de 1960 e 1970, ainda permanecia presa à previsibilidade da música tonal. Com efeito, não há no disco nenhuma melodia memorizável, que possa ser facilmente cantarolada pelo ouvinte. Em vez disso, o que se ouvem são sequências de alturas aparentemente aleatórias, sem um pulso regular, e efeitos timbrísticos inusitados, que frustram as expectativas do ouvinte habituado à canção popular tradicional.
As oito faixas do disco são compostas por Arrigo Barnabé ao longo dos anos 1970. As mais antigas - Clara Crocodilo (1972), parceria com Mário Lúcio Cortes, e Sabor de Veneno (1973), vencedora do prêmio de melhor arranjo do Festival da Tupi de 1979 - baseiam-se em séries de oito e seis alturas, respectivamente. Já Acapulco Drive-In (com Paulo Barnabé, Otávio Fialho e Gilson Gibson), Diversões Eletrônicas (com Regina Porto, composição vencedora do 1° Festival Universitário de MPB da TV Cultura, em 1979), Instante, Orgasmo Total, Infortúnio e Office-Boy são dodecafônicas, ou seja, baseiam-se em séries de 12 sons, sendo que as três últimas apresentem ainda passagens em atonalismo livre. Com afinação bastante precisa, um coro feminino formado pelas vozes líricas de Suzana Salles, Vânia Bastos (1956) e Tetê Espíndola (1954) se alterna nos vocais com Arrigo Barnabé, cujas intervenções oscilam entre o canto, o grito e a fala. Tudo isso acompanhado por uma seção de metais, piano, baixo elétrico, percussão, guitarra e sintetizadores.
O desnorteamento auditivo provocado pela ausência de referências tonais é reforçado, no plano poético, por letras que tratam de um universo urbano opressivo. Com exceção de Instante, única composição não narrativa do álbum, todas faixas de Clara Crocodilo exploram personagens do submundo de uma metrópole marcada pela desumanização. Funcionando como contos musicados, essas canções apresentam narrativas fortemente imagéticas que se assemelham a histórias em quadrinhos, entoadas por um narrador (Arrigo Barnabé) cuja voz macabra lembra a de repórteres policiais de programas radiofônicos sensacionalistas. A primeira faixa, Acapulco Drive-In, narra o encontro entre uma prostituta e seu cliente, desde a primeira abordagem ("Dentro do Maverick/ Cheirando a jasmim/ Passa o coroa/ Fazendo sinal") até o desfecho dentro de um drive-in ("- Tire, quero sua pele parda/ Lábios de carmim/ [...] No zíper, a surpresa que já tarda/ Calcinha imitando pele de leoparda"). O contato entre os dois personagens, oriundos de mundos distintos (ela, uma prostituta de "pele parda"; ele, um "coroa" em seu Maverick), é totalmente mediado por objetos (o carro do freguês e seu perfume exagerado, o batom carmim, o zíper, a "calcinha de leoparda"). A "coisificação" do sexo é retomada na faixa seguinte, Orgasmo Total, que se encerra zombando dos comerciais de TV que vendem o prazer sexual: "Não passe ridículo. Você também pode ser feliz como eles. Basta pedir hoje mesmo, pela caixa postal 6969, o seu exemplar de 'O orgasmo ao alcance de todos'". Sátira sutil a Garota de Ipanema, Sabor de Veneno trata de uma menina com "um balanço diferente", mas que em vez da graça aclamada pelos bossanovistas, traz na boca "um gosto/ (uma coisa estranha, um negócio esquisito)/ meio amargo do futuro".
Embora muito distante do engajamento da canção popular brasileira das décadas de 1960 e 1970, a música perturbada de Clara Crocodilo também é carregada de conotações políticas. Finalista do 1° Festival Universitário de MPB da TV Cultura, a canção Infortúnio traz uma referência indireta à morte de Vladimir Herzog ("ele morreu porque pensou, pensou demais"), conforme revela mais tarde o próprio Arrigo Barnabé. As críticas mais contundentes do disco, porém, dirigem-se não ao regime político vigente, mas às condições impostas pelo sistema capitalista nas metrópoles periféricas, como se nota nas duas principais canções do disco, Office-Boy e Clara Crocodilo. Compondo uma só narrativa, elas contam a história de um contínuo que, oferecendo-se como cobaia para testar um novo produto de um "poderoso laboratório multinacional", transforma-se no ser mutante Clara Crocodilo. "Delinquente", "fascínora", "inimigo público número 1", Clara Crocodilo é um transgressor da ordem social ("Quem cala consente, eu não me calo"), negando-se a "morrer nas mãos de um tira" ou "nas mãos de um rato", e resistindo corajosamente diante de um sistema massificador.
Embora não logre introduzir o serialismo na música popular, Clara Crocodilo exerce certa influência sobre o rock dos anos 1980, tanto na teatralidade e nos vocais de bandas como a Blitz, como no canto-fala gutural de algumas músicas dos Titãs. Também rende diversas releituras, como a ópera-rock Clara Crocodilo (1981), montada pela coreográfa Lalá Denheinzelin; o curta-metragem A Estória de Clara Crocodilo (1981), de Cristina Santeiro; e o CD A Saga de Clara Crocodilo (Thanx God Records, 1999, selo de Arrigo Barnabé), que reúne antigas faixas do álbum original a novas composições sobre o mesmo tema. Em 2004, o CD Arrigo Barnabé e Paulo Braga, ao Vivo, em Porto reúne as principais canções de Clara Crocodilo em arranjo para dois pianos, com algumas intervenções vocais de Barnabé e Braga. Relançado em CD pela Polygram (1996) e pela Thanx God Records (2000), Clara Crocodilo permanece até hoje uma das obras mais experimentais e inovadoras da discografia brasileira.
Notas
1 CARVALHO, Sandra. Arte no jogo da independência. Folha de S.Paulo, São Paulo, 4 fev. 1981, Caderno Ilustrada, p. 29.
2 FIORILLO, Marilia Pacheco. Arrigo, o desbravador. Veja, 7 jan. 1981, p. 46.
3 Técnica composicional atonal baseada no uso de uma ou mais séries (conjunto se alturas), em vez das escalas tradicionais.
4 Técnica composicional atonal que não se baseia no uso de séries.
5 Formulada por Caetano Veloso em meados dos anos 1960, e utilizada por Augusto de Campos e outros críticos para explicar as transformações ocorridas na MPB desde a bossa nova, a expressão designa o processo de retomada e atualização de uma tradição musical que remonta aos sambistas das décadas de 1920 e 1930 (como Sinhô, Noel Rosa e Ismael Silva). VELOSO, Caetano. Que caminho seguir na música popular brasileira? Revista Civilização Brasileira, ano I, n. 7, mai. 1966, p. 377 (debate coordenado por Airton Lima Barbosa).
Espetáculos 1
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21/6/1981 - 5/7/1981
Fontes de pesquisa 6
- ARRIGO BARNABÉ e a Banda Sabor de Veneno. Clara Crocodilo. São Paulo: Independente, 1980. (encarte).
- BATISTA, Juliana Wendpap. O universo de Clara Crocodilo: história e música no LP de Arrigo Barnabé. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
- CARVALHO, Sandra. Arte no jogo da independência. Folha de S.Paulo, São Paulo, 4 fev. 1981, Caderno Ilustrada, p. 29.
- CAVAZOTTI, André. O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB: as canções do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnabé. Belo Horizonte, v. 1, 2000. p. 5-15. Disponível em: http://musica.ufmg.br/permusi/port/numeros/01/num01_cap_01.pdf.
- FIORILLO, Marilia Pacheco. Arrigo, o desbravador. Veja, 7 jan. 1981, p. 46.
- SOARES, Dirceu. A juventude de Rita e Arrigo, entre os melhores do disco. Folha de S.Paulo, São Paulo, 1 jan. 1981, Caderno Ilustrada, p. 21.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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CLARA Crocodilo.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra54146/clara-crocodilo. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7