Fogo Morto
Texto
Fogo Morto (1943), livro considerado um dos representantes mais importantes do romance regionalista brasileiro, marca o encerramento de uma etapa na produção de José Lins do Rego (1901-1957) Trata-se do ciclo da cana-de-açúcar, em que o romancista apresenta o apogeu e o declínio dos engenhos nordestinos produtores de açúcar, desde a segunda metade do século XIX até o início do XX.
Ao retratar a decadência da propriedade Santa Fé, em torno da qual se ambienta a trama, a narrativa retoma o universo e o tema de obras anteriores. Assim como Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), O Moleque Ricardo (1935) e Usina (1936), Fogo Morto extrai seus conflitos de uma sociedade patriarcal, organizada segundo o modelo da produção açucareira em latifúndios. Diferentemente do que ocorre nos outros títulos, porém, os recursos narrativos são aproveitados de forma a obter o máximo da psicologia das personagens – e não da exterioridade dos fatos ou das confissões feitas por uma primeira pessoa.
Organizado em três planos que se complementam e esclarecem, Fogo Morto dedica cada parte a uma personagem. A primeira delas é protagonizada por José Amaro, seleiro que se ressente de sua condição, incapaz de fazer frente ao poder e à arrogância dos senhores de engenho. Desde menino, ele vive na propriedade de Lula de Holanda, cuja trajetória é apresentada na segunda parte: pelo casamento com Amélia, esse homem da cidade tornou-se senhor da Santa Fé. A última parte concentra-se em Vitorino Carneiro da Cunha, figura quixotesca que transita entre as diferentes esferas sociais presentes no livro.
Centrada nas personagens, a estrutura permite retratar o Nordeste “de dentro para fora”, segundo palavras que o próprio romancista emprega para se referir ao poeta Jorge de Lima, e que o crítico José Aderaldo Castello reaproveita para caracterizar o trabalho de José Lins. Assim, Fogo Morto realiza de forma ao mesmo tempo épica e lírica – isto é, narrando de modo “profundamente humano” o destino trágico de personagens – a proposta do Romance de 1930: fazer da ficção um instrumento de interpretação social, na esteira do que propunha o antropólogo, e amigo próximo de José Lins, Gilberto Freyre (1900-1987).
Um aspecto decisivo para a configuração do ponto de vista do romance é o uso intensivo do discurso indireto livre. Ao permitir que os pensamentos das personagens se insinuem por meio da voz do narrador, o recurso cria um efeito polifônico, contrapondo fatos e versões, ideologias e contraideologias. Num episódio em que Vitorino termina agredido em uma briga, lê-se: “[Adriana] Correu para perto do marido. Corria um fio de sangue de seu rosto. Era um homem branco, um homem bom, uma criança sem juízo, e um desgraçado fazia aquilo com ele”. É dela o pensamento de que , por ser branco, Vitorino não deveria ter sido agredido.
A composição de perspectivas será especialmente relevante para delinear o estatuto das personagens femininas na narrativa. Vítimas do machismo e do desrespeito em todos os níveis sociais, mulheres como Sinhá, Adriana e Amélia refletem sobre a sua condição - como são incapazes de fazer os maridos -, e chegam mesmo a agir à revelia dos companheiros como modo de assegurar a sobrevivência da família: “Deus a livrasse que Lula soubesse de uma coisa daquela […]. Um senhor de engenho sustentado pelo trabalho de sua mulher!”, diz Amélia.
A proximidade constante entre a voz do narrador e o pensamento das personagens depende essencialmente da simplicidade verbal que assegura, de modo verossímil, a manutenção do registro entre um e outro discurso. A sintaxe é direta e limpa; o uso de pronomes e a regência verbal são informais; o ritmo das frases simula oralidade; expressões como “Para onde Vitorino Carneiro da Cunha pende, a coisa vira” procuram ser fiéis ao universo retratado.
Ainda que as frases sejam cuidadosamente trabalhadas – como exemplifica a sonoridade fluida em “Ia ver a lua banhando de leite as várzeas do coronel Lula” –, o efeito geral é o da ausência de artifício. Por isso, Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em apresentação ao livro, aproxima o autor a um contador de histórias populares e afirma: “O grande valor literário de José Lins do Rego reside nisto: o seu assunto e seu estilo correspondem-se plenamente”.
A aparente ausência de artifício é responsável também pela impressão de que as personagens são apresentadas diretamente, sem mediação, estimulando o leitor a identificar-se. A esse respeito, Mário de Andrade (1893-1945) afirma: “o drama deles não é propriamente deles, mas nosso. Nós é que lhes damos, pelas nossas reações intelectuais, cultivadas e lógicas, um sentido dramático que eles nem de longe supõem ter”.
Se, conforme formulou Antonio Candido (1918), “Fogo Morto é, por excelência, o romance dos grandes personagens”, uma dessas grandes figuras é o capitão Vitorino – cujo idealismo, em meio a uma realidade política brutal e brutalizante, revela a complexidade com que José Lins concebeu suas criaturas. É capaz de afirmar tanto que “Um voto é uma opinião. É uma ordem que o senhor dá aos que estão de cima”, como “Isto de eleição para matar boi e fazer festa não é comigo. Gosto de eleição com faca, com tiro, com cheiro de pólvora”.
Trata-se de um exemplo evidente de que as personagens de Fogo Morto não se reduzem a produtos do ambiente que o romance procura problematizar. José Lins do Rego aproxima-se, assim, de Graciliano Ramos (1892-1953), que em Vidas Secas (1938) também se concentra na dimensão subjetiva para retratar as dificuldades enfrentadas por retirantes do sertão brasileiro – ao passo que ambos se distanciam de autores como Jorge Amado (1912-2001), de posicionamento político mais claro. Com uma visão profunda e complexa, Fogo Morto efetua, portanto, um retrato, desde a subjetividade, da problemática realidade que procura questionar.
Como citar
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FOGO Morto.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra54138/fogo-morto. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7