Eu e Outras Poesias
![Eu, 1912 [Obra]](http://d3swacfcujrr1g.cloudfront.net/img/uploads/2000/01/000181010019.jpg)
Eu, 1912
Augusto dos Anjos
Texto
Com a publicação Eu, em 1912, pelo poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914), retomam-se as balizas então canônicas da poesia nacional sob o signo da perplexidade. São elas o romantismo tardio, fundamental para a expressão de si - esse "eu" - que atravessa cada uma das composições; e a mistura de temática sombria e apuro linguístico, na qual a estética simbolista se deixa mediar pelas exigências técnicas parnasianas sob a forma de um vocabulário de fundo cientificista. Devido a esses aspectos, Augusto dos Anjos invoca e dissolve as grandes convenções literárias de seu momento para afirmar uma obra singular.
Sabe-se que os poemas de Eu remontam a um desenvolvimento literário que data de 1901 e atravessam toda a primeira década do século XX. O melhor da militância literária de Augusto dos Anjos acontece nas páginas do jornal O Comércio, da antiga capital Paraíba do Norte (atual João Pessoa). Nelas, lemos o jovem poeta em formação, admirador dos já consagrados Cruz e Sousa (1861-1898) e Raimundo Corrêa (1859-1911). Nessa fase empenha-se, sobretudo, em utilizar o simbolismo de Cruz e Sousa, do qual Eu registra alguns poucos exemplos (o mais contundente é o soneto Vandalismo, de 1904). O divisor de águas na vida intelectual do poeta se dá quando ingressa na Faculdade de Direito do Recife. Nessa cidade Augusto dos Anjos se envolve num ambiente de debates consolidado sob a égide e as disputas da recém-proclamada República brasileira. Na faculdade o jovem poeta tem acesso a leituras e noções científico-filosóficas decisivas para a formação de uma perspectiva poética adequada às ciências físicas e biológicas, àreas de estudo importantes no período para a investigação e a definição da verdade dos fatos da vida e da experiência humana.
Dessa combinação decorrem a misantropia implacável (por vezes até grosseira em sua combinação de prosaismo moral e tecnicismo descritivo) e o tom sentencioso que são marcas registradas dos poemas de Eu. E, assim, da "elegia panteísta do universo" do programático Monólogo de uma Sombra, que abre o livro, emerge o eu lírico - este "filho do carbono e do amoníaco,/ Monstro de escuridão e rutilância", como lemos em Psicologia de um Vencido. O eu lírico está presente nas ponderações sobre a vida e o destino humanos (Deus-Verme, Mater Originalis, Último Credo, O Mar, a Escada e o Homem), nas reminiscências biográficas (Debaixo do Tamarindo, Ricordanza della mia Gioventú, Sonetos ao Pai) e nas perambulações urbanas pelos horrores da "noite dos vencidos" (Vozes da Morte). Também ocorre nos importantes ciclos As Cismas do Destino e Os Doentes, nos quais o homem e suas aspirações se dissolvem em dor e são aniquiladas na materialidade do ciclo vital.
O livro, publicado quando o poeta vivia no Rio de Janeiro, não passou de todo despercebido aos círculos literários da capital, embora se registrem entre os primeiros leitores, ao lado do apuro formal e inquestionável valor artístico, algum estranhamento ou mesmo condescendência para com a mórbida radicalidade de sua poesia. Ambas as reações alinham-se ao culto das "nevroses" do gênio, as quais darão o tom da divulgação póstuma iniciada por Órris Soares, colega paraibano do poeta que publica os poemas posteriores a Eu, as Outras Poesias. Eles que passam a integrar o título do volume a partir de 1928.
Multiplicam-se, nesse sentido, estudos fundamentalmente biográficos e psicológicos, como os de Raimundo Magalhães Jr. (1907-1971)1 e Chico Viana (1951).2 Neles, são analisadas as particularidades estilísticas e o programa poético de Augusto dos Anjos, além de investigadas suas disposições íntimas. Isso reforça a tendência ao personalismo da recepção crítica do poeta e lega a um segundo plano o interesse impessoal pelo lugar do poeta na literatura brasileira. Com foco diverso, vale a menção a críticos como Lúcia Helena3 e Francisco Foot Hardman (1952),4 que identificam as fontes filosóficas da poesia de Eu ou assinalam o trabalho do poeta com lugares-comuns do romantismo brasileiro, caso das menções críticas à figura do índio e seu genocídio em Lázaro da Pátria e Os Doentes. É proposta, então, uma revisão do cânone modernista brasileiro e do viés nacionalista (para não dizer paulista) desse movimento a partir da modernidade e negatividade da obra de Augusto dos Anjos. Pois ele, como poeta, não teria apenas se formado sob o positivismo filosófico da academia recifense, os rigores da estética parnasiana e a negatividade soturna dos simbolistas. Mas, também, refletido um momento de desilusão ante a corrupção dos ideais civilizatórios da ordem republicana, as irracionalidades da oligarquia monocultora e a tragédia social mais ampla, como no caso do massacre de Canudos.5
A partir de sua consagração póstuma, na década de 1930, Augusto dos Anjos entra para o cânone literário brasileiro como um dos mais enigmáticos e populares poetas nacionais. Não raro comparado aos grandes da arte poética de seu tempo ao mesmo tempo em que toca de forma sui generis as sensibilidades mais íntimas do leitor comum, o autor de Euparece fazer as vezes de esfinge de uma história literária que ainda se ressente de lapsos e silêncios.
Notas
1 MAGALHÃES JR., Raimundo. Poesia e vida de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: MEC, 1978.
2 VIANA, Chico. Evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos. João Pessoa: Editora Universitária UFJP, 1994.
3 HELENA, Lúcia. A cosmoagonia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.
4 HARDMAN, Francisco Foot. Augusto dos Anjos e o antitropicalismo. In: ______. A vingança de Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
5 Canudos foi um foco de resistência à primeira República, ocorrido no interior da Bahia, tendo como líder Antônio Conselheiro. Pregava-se a o fim da desigualdade social e a volta à monarquia. A comunidade foi arrasada em 1897 por tropas federais.
Fontes de pesquisa 4
- HARDMAN, Francisco Foot. Augusto dos Anjos e o antitropicalismo. In: ______. A vingança de Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
- HELENA, Lúcia. A cosmoagonia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.
- MAGALHÃES JR., Raimundo. Poesia e vida de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.
- VIANA, Chico. O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos. João Pessoa: Editora Universitária UFJP, 1994.
Como citar
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EU e Outras Poesias.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra51167/eu-e-outras-poesias. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7