Cobra Norato

Cobra Norato, 1931
Raul Bopp
Texto
Publicado em 1931, Cobra Norato é escrito pelo poeta gaúcho Raul Bopp (1898-1984). No que toca a concepção e técnica, é um dos textos mais representativos da primeira geração modernista.
Combina o primitivismo estético e o interesse etnográfico que perpassam os trabalhos dos movimentos pau-brasil (1924) e antropofágico (1928). Especificamente, vincula-se à poesia de Oswald de Andrade (1890-1954), a prosa de Mário de Andrade (1893-1945) e a pintura de Tarsila do Amaral (1886-1973). Os 33 poemas que compõem o ciclo de Cobra Norato são o desdobramento de uma narrativa voltada ao público infantil, baseada em conhecida lenda da região amazônica. Segundo a lenda, Cobra Norato é um dos gêmeos nascidos do relacionamento entre uma índia e um boto cor-de-rosa. Diferentemente de sua irmã, Maria Caninana, com quem vive no rio Tocantins, Cobra Norato tem bom relacionamento com a população da região, auxiliando barqueiros e pescadores em dificuldade. Sempre em época de visita à mãe, transforma-se em homem e vai à cidade para dançar e alimentar seu sonho de assumir integralmente a forma humana, o que por fim consegue. A narrativa segue o périplo descrito no conto popular: ao longo dos poemas, o eu-lírico, na pele de Cobra Norato, atravessa a floresta, passando por Belém e Macapá. No caminho, pretende encontrar a filha de certa rainha Luzia, casar-se com ela, e viverem nas terras de um romântico “Sem-Fim”.
O poema de abertura apresenta ato de literal incorporação do outro – o protagonista estrangula Cobra Norato para assumir sua pele –, denunciando a antropofagia nos poemas do ciclo. Estabelece, assim, uma versão modernista do guia a conduzir o poeta em seu périplo (como Virgílio, em A Divina Comédia), em que o protagonista apresenta-se sob a pele da personagem que deve conduzi-lo, e inicia-se a travessia de uma Amazônia transformada em círculo mítico da vida brasileira. Desfeito dos olhos de uma racionalidade estranha ao espaço e à vida que nele habita (Poema I), o poeta adentra a “floresta cifrada” (II, evocando o “Inferno” de Dante e sua “selva selvagem, áspera e forte”), na qual vestígios da passagem da filha da rainha Luzia (a Beatriz de seu percurso) servem de introdução a um universo sedutor e traiçoeiro inimigo do homem (V). Em seu labirinto (VII) o eu-lírico perde-se, não obstante anote a comoção dos elementos naturais que o constituem, reunidos em torno do grande rio, que inunda a terra (III) e escraviza as árvores (IV), enquanto ventos e chuvas torrenciais (VIII) arrastam folhas e animais.
Depois de conhecer a vida da floresta em suas formas mais baixas, o eu-lírico recebe o auxílio de um tatu (IX), que o desatola de um “útero de lama” e o conduz para longe do “escurão sem saída”. Dá início à segunda parte da viagem. Nela, o protagonista e seu guia acompanham o curso do rio chegando a uma lagoa, Onça-poiema, e encontram descanso em meio a animais e pequenos braços de rio (X-XXIII). No caminho do mar, encontram a agitação da pororoca. Aqui a natureza revela-se benfazeja e organizada. Esse organismo pulsante, variado e harmônico abriga, em um terceiro momento da viagem da dupla (XXIV-XXVII), uma aldeia, onde ambos assumem forma humana para integrar-se à comunidade, seu festival e seus ritos.
Deixando o fundo da floresta e da vida e deparando-se com o ponto em que homem e natureza tornam-se um, Cobra Norato escuta sons de trem e navio (XXVIII) e é informado de que se trata de Cobra Grande, que busca na floresta uma virgem para um casamento nas imediações de Macapá. Na última parte da viagem (XXIX-XXXIII), o protagonista e seu guia vão ao casamento do vilão (entidade que sugere a tomada da natureza pelo progresso mecânico) com o intuito de salvar a virgem. Esta, para a surpresa dos heróis, revela-se a própria filha da rainha Luzia. O protagonista, então, captura a noiva de Cobra Grande que, saindo em seu encalço, acaba acidentada na Igreja da Sé de Belém. Dado o grande embate (lugar-comum próprio à estrutura do conto popular), herói e donzela seguem para as Terras do Sem-Fim, onde celebram o enlace amoroso, próprio ao desfecho de um conto de fadas.
Nas palavras de Augusto Massi (1959), em introdução à edição da poesia completa de Bopp, destaca-se da leitura dos poemas a “pele elástica da forma” que lhes dá liga. Nisto, o crítico faz eco às palavras do próprio autor, para quem
o romanceiro amazônico, de uma substância poética fabulosa [...] não podia se acomodar num perímetro de composições medidas. Os moldes métricos fracionados serviam para dar expressão às coisas do universo clássico. Mas deformam ou são insuficientes para refletir com sensibilidade um mundo misterioso e obscuro de vivências pré-lógicas1.
Assim, além de um verso livre calcado na oralidade e atento às nuances regionais, regra da estética modernista, Bopp vale-se de procedimentos de vanguarda para a estruturação da obra. Seja em sentido amplo, fundamentada em justaposições, que conferem ao périplo um caráter fragmentário, seja no sentido específico das imagens. Nelas nota-se também o corte onírico do surrealismo, presente na antropomorfização da natureza (céus que “se espreguiçam”, XII; que “demoram”, XIV; floresta que “caminha”, XVII, sóis “engordurados, XIII etc.) sob a observação do eu-lírico.
Embora posto em segundo plano em relação às realizações literárias do modernismo paulista, Cobra Norato singulariza-se como grande esforço épico da poesia modernista brasileira.
Notas
1. BOPP, Raul. A poesia completa de Raul Bopp (Organização, preparação do texto e comentários de Augusto Massi). São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1998. p. 12.
Fontes de pesquisa 4
- BOPP, Raul. A poesia completa de Raul Bopp (Organização, preparação do texto e comentários de Augusto Massi). São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1998.
- BUSS, Alcides. Cobra Norato e a especificidade da linguagem poética. 1978. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, 1978. Disponivel em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/74837/170404.pdf?sequence=1. Acesso em: 12 jun. 2020
- ESTEVES, Roberto Antônio. Cobra Norato de Raul Bopp: leituras possíveis. Revista de Letras. Vol. 28 (1988), pp. 73-83. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/27666508?seq=1. Acesso em: 16 jun. 2020
- PEIXOTO, Sérgio Alves. Cobra Norato: Uma introdução à leitura. Revista do Centro de Estudos Portugueses (CESP). v. 24, n. 33 – jan.-dez. 2004. pp 155 -181. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cesp/article/viewFile/6682/5679. Acesso em: 12 jun. 2020
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COBRA Norato.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra35529/cobra-norato. Acesso em: 03 de maio de 2025.
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