A Redenção de Cam

A Redenção de Cam, 1895
Modesto Brocos
Óleo sobre tela, c.i.d.
199,00 cm x 166,00 cm
Museu Nacional de Belas Artes (MNBA)
Texto
Obra consagrada por tratar de questões raciais e populares no século XIX, a tela A Redenção de Cam, de Modesto Brocos (1852-1936), ainda hoje suscita polêmicas, sobretudo no que se refere a sua recorrente utilização como ilustração em teses favoráveis ao branqueamento da população brasileira.1 A pintura, que recebe a medalha de ouro no Salão Nacional de Belas Artes de 1895 e tem importância central para a compreensão dos rumos que estão sendo tomados pela arte brasileira nas últimas décadas do século XIX e início do XX, reúne alguns aspectos importantes a serem destacados como o anseio de configuração de uma escola de pintura vinculada a questões nacionais, sem romper, no entanto, com modelos já arraigados na academia.
A simples escolha do tema a ser retratado explicita essa contradição interna presente em A Redenção de Cam. Como o próprio título diz, a obra faz referência direta à passagem bíblica de Cam, filho de Noé, castigado por ter olhado o pai nu e bêbado. Na verdade, o castigo divino é aplicado a seu filho Canaã, amaldiçoado como "servo dos servos". O fato de Cam ser apontado na Bíblia como suposto ascendente das raças africanas faz com que tal passagem comece a ser usada pelos defensores da escravidão negra como um argumento claro de que tal sistema não seria contrário aos desígnios de Deus.
Essa justificativa torpe faz com que muitos vejam a obra de Brocos como uma reafirmação dessa corrente racista. No entanto, chama atenção o fato de o artista promover na realidade uma inversão da passagem bíblica. Mesmo que carregada, sem dúvida, do espírito de seu tempo, que vê na dissolução das raças uma possibilidade de redenção, a obra trata de uma questão pouco aceita nessa época como tema artístico passível de ser representado. O que interessa a Brocos não é a maldição e sim a redenção de Cam. Não se trata de uma cena bíblica, mas de uma hibridação entre a alegoria religiosa - expressa no título - e um realismo de caráter social. Em outras palavras, ele procura figurar uma possibilidade de reinício, de configuração de um modelo de miscigenação entre as raças, uma discussão extremamente importante durante a Primeira República (1889-1934).
A cena que ele opta por retratar, com cuidadoso apuro técnico e riqueza de detalhes que garantem um aspecto de grande fidelidade naturalista, quase fotográfica, destaca três gerações distintas. No campo esquerdo, vê-se uma mulher negra mais velha, com as mãos erguidas para o céu em agradecimento. No centro, uma mulher negra mais jovem, que tem sobre os joelhos o filho quase branco. Este, por sua vez, olha para a avó - e para a sua origem - com simpático interesse. As mãos e os olhares desses três personagens compõem um fluxo circular que garante forte dinamismo e coerência interna à tela. Esse movimento é amplificado pelas folhas recurvadas da palmeira, ao fundo, e pelo fato de esse segmento ter na parte posterior uma parede amarelada de pau a pique e um chão de terra batida, quase do mesmo tom.
A metade direita da pintura (segmentada em duas partes quase idênticas por uma linha vertical central formada pelo batente de madeira, pela criança que está no meio das atenções e se prolonga na delicada franja do xale materno) é ocupada por um homem branco que observa satisfeito, com um pequeno desvio de torso, aquele que provavelmente é seu filho. A brancura de sua tez é reforçada por ele estar diante de um vão de porta e ter, ao fundo, uma sombreada imagem de interior. Seus pés, que estão virados cautelosamente para o lado oposto do núcleo das mulheres, pisam não mais a terra batida, mas um calçamento de pedras que, mesmo precário, revela certo anseio de melhores condições de vida. O uso de tons rebaixados de marrom e amarelo, como que saídos da terra, contribui para dar unidade e movimento interno à tela.
Surpreende também o preciosismo com que estão representadas as fisionomias e as vestes, que leva muitas vezes a crítica a considerar a pintura de Brocos um tanto fria e amaneirada, ainda mais se levar em conta que o artista tem grande importância no movimento de reformulação e modernização da academia brasileira e mantém contato direto com as experiências de vanguarda desenvolvidas na Europa, com conhecimento das técnicas impressionistas e pós-impressionistas, como o pontilhismo de Georges Seurat (1859-1891), seu companheiro de estudos na França.
Como escreve o próprio Brocos, num trecho que parece ilustrar o trabalho minucioso em A Redenção de Cam, "todos os elementos que entram em uma composição devem ter por fim a unidade do conjunto, e fazer com que todas as figuras, os movimentos variados, as direções das linhas, tudo tenha por fim ajudar a ação que se quer representar. Urge que os personagens em cena não se prejudiquem mutuamente [...] conciliando assim a variedade com a unidade".2
A tela A Redenção de Cam, juntamente com a obra Engenho de Mandioca, é considerada uma das principais obras de autoria do artista espanhol. As duas têm em comum o foco centrado nos trabalhadores e na parcela mais pobre da população, fenômeno ainda raro, mas que começa a ganhar fôlego no período. Como aponta o crítico Gonzaga Duque (1863-1911), não sem reticências, há na obra de Brocos certo prolongamento da experiência um tanto isolada de Almeida Júnior (1850-1899) de retratar o caipira paulista. Incomoda ao crítico exatamente a utilização da pintura de gênero como fundamento da arte nacional.3 Ele também exerce grande influência sobre seus alunos da nova geração, interessados em seguir na trilha do realismo crítico, como Sigaud (1899-1979) e Quirino Campofiorito (1902-1993).
Notas
1. Em 1911, a tela é usada pelo médico João Baptista de Lacerda para defender uma tese de "branqueamento" por meio da mestiçagem. Muitos veem nessa apropriação um apoio do artista à tese em questão. Outros consideram essa associação uma aproximação simplista, que atribui erroneamente a Brocos uma postura diretamente vinculada às teses racistas. Sobre a questão, ver SANTOS, Ricardo Ventura; MAIO, Marcos Chor. Qual 'retrato do Brasil': raça, biologia, identidades e política na era da genômica. Mana - estudos de antropologia social, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 61-95, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v10n1/a03v10n1.pdf. Acesso em: 28 set. 2008; HERKENHOFF, Paulo. Corpo, arte e filosofia no Brasil [Primeiras notas]. Disponível em: http://www.seminariosmvrd.org.br/textos/txt_paulo.pdf. Acesso em: 28 set. 2008; e CARDOSO, Rafael. A arte brasileira em 25 Quadros. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, p.102-107.
2. Citação de seu Retórica dos Pintores, publicado em 1933. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/brocos_retorica.htm. Acesso em: 25 set. 2008.
3. DUQUE, Gonzaga. Contemporâneos. Rio de Janeiro: Tipografia Benedito de Souza, 1929. Apud CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é beleza, p. 296.
Fontes de pesquisa 7
- BROCOS, Modesto. Retórica dos pintores. Rio de Janeiro, Typ. da Indústria do Livro, 1933. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/brocos_retorica.htm.
- CAMPOFIORITO, Quirino. História da pintura brasileira no século XIX. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1983.
- CARDOSO, Rafael. A Arte brasileira em 25 quadros (1790-1930). Rio de Janeiro: Record, 2008. 224 p., il.
- CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza: a crítica de arte de Mário de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.
- HERKENHOFF, Paulo. Corpo, Arte e Filosofia no Brasil [Primeiras Notas]. Disponível em: http://www.seminariosmvrd.org.br/textos/txt_paulo.pdf. Acesso em: 28 set. 2008.
- MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO, 2000, SÃO PAULO, SP. Arte do século XIX. Curadoria Luciano Migliaccio, Pedro Martins Caldas Xexéo; tradução Roberta Barni, Christopher Ainsbury, John Norman. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000.
- SANTOS,Ricardo Ventura e MAIO, Marcos Chor. Qual 'Retrato do Brasil': Raça, Biologia, Identidades e Política na era da Genômica. Mana - Estudos de Antropologia Social, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 61-95, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v10n1/a03v10n1.pdf. Acesso em: 28 set. 2008.
Como citar
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A Redenção de Cam.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra3281/a-redencao-de-cam. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7