Invenção de Orfeu

Invenção de Orfeu, 1952
Jorge de Lima
Texto
Invenção de Orfeu é um dos projetos mais ambiciosos e ousados da literatura brasileira. Considerado ápice e síntese da carreira de Jorge de Lima (1893-1953), propõe-se a contar “a história mal dormida de uma viagem”. A definição do enredo dá lugar à experimentação sem precedentes: obra metalinguística, questiona a possibilidade de um amplo e coeso monumento poético da modernidade.
Oscilando entre os gêneros épico e lírico, seus 11 mil versos dividem-se em dez cantos, em alusão a Os Lusíadas (1572), de Luís de Camões (1524-1580). As referências à epopeia fundadora da língua portuguesa – a que se juntam a Odisseia, do poeta grego Homero, Eneida, do poeta romano Virgílio (70 a.C.-19 a.C.), e A Divina Comédia (ca.1308-1321), do italiano Dante Alighieri (1265-1321) – respondem pelo desejo de encontrar alguma coesão. No entanto, o eu lírico vê-se impossibilitado de associar esses textos à experiência contemporânea. A retomada da tradição literária não basta para lhe garantir unidade formal ou temática.
As obras do passado desenvolvem-se em um único esquema formal, segundo o andamento narrativo. No caso de Os Lusíadas, versos decassílabos e estrofes de oito versos, com esquema fixo de rimas, a serviço da saga de Vasco da Gama e, por extensão, da nação lusitana. Invenção de Orfeu, por sua vez, representa “um inventário de quase todas as formas de verso, de estrofe e de poema já intentados na poética portuguesa”, conforme o crítico Mário Faustino (1930-1962). Quanto ao tema, não há leituras críticas que estabeleçam unanimidade para o sentido do livro.
As dificuldades dividem a opinião da crítica. O poeta Murilo Mendes (1901-1975), que publica com Jorge de Lima, em 1935, Tempo e Eternidade, e sugere o título “Invenção de Orfeu”, em 1952, escreve: “O trabalho de exegese do livro terá que ser lentamente feito, através dos anos, por equipes de críticos que o abordem com amor, ciência e intuição, não apenas com um frio aparelhamento crítico”. Ponto de vista que vê no livro “uma espécie de soma, em poesia, da nossa época”. Outros autores condenam a ilegibilidade do poema. Para o poeta Augusto de Campos (1931), a obra é “um equívoco”, “pela inconsistência de organização e falta de rigor”.
Recentemente, a crítica aponta irregularidades de Invenção de Orfeu como propósito de seu projeto. O poema é, nesse sentido, a revisitação do modernismo, especialmente do desejo de construção de uma identidade nacional, que o autor exercita em livros anteriores. Assim, retomar a procura da brasilidade de Nega Fulô (1928) ou a questão racial de Poemas Negros (1947) seria rejeitar as soluções então adotadas como forma poética adequada. Negados, “o projeto civilizatório, a constituição da identidade, a fundação de um país” seriam, segundo Betina Bischof, “a parte central – mas pela falta” da obra.
A estrutura problemática, a opacidade do sentido e o polimorfismo mostram que as formas líricas tradicionais já não respondem aos propósitos da poesia. Dois fatores sustentam os argumentos dessa interpretação: em primeiro lugar, a recorrência do soneto no cantos. Sua forma breve, com sentido completo, problematiza a continuidade sugerida por séries de composições ordenadas em cantos e revela o domínio de Lima sobre essa estrutura, consagrada com o Livro de Sonetos (1949). Algo semelhante ocorre no penúltimo canto (IX), “Permanência de Inês”, em que, ao glosar tema e forma camonianos (o episódio de Inês de Castro, em oitavas), o poeta demonstra a competência para expor, nos limites tradicionais, a decisão de se arriscar em algo ousado.
Em segundo lugar, as imagens poéticas, também dificultam a compreensão do livro. As metáforas exigem decifração. Ainda no canto I, “Fundação da Ilha”, em que estabelece os pressupostos da tarefa poética, Lima assim descreve o espaço de que parte:
Indícios de canibais,
sinais de céu e sargaços,
aqui um mundo escondido
geme num búzio perdido
(poema 2).
Há duas matrizes de imagens: o mar e a noite, ambas com múltiplos desdobramentos. A primeira, herança das epopeias de referência, aproxima o trabalho poético de uma expedição, em que o eu lírico enfrenta tormentas, calmarias e vence a ameaça do naufrágio. O oceano pode ser lido como a própria linguagem ou a tradição poética. Dessa tarefa, emergem diferentes estados , como a procura pelo próprio tom (“Filiei-me à eternidade sem querer, / e agora vago como se vaga a esmo” – I, 17); a angústia provocada pela tradição (“Ó pai, sabei que eu já medi em palmos / o meu tamanho pelos outros todos, / pelas outras medidas, – desmedidas / sombras desesperadas, desgrenhadas” – II, 13) e a ameaça do fim (“Vejo morrer, ó céus, em dura lei, / meus membros, minhas vísceras, meus ossos / sob as rosas de lava que inventei” – VI, 11).
Já o ambiente noturno gera metáforas relacionadas ao sonho e ao inconsciente, uma das predileções de Lima, que se aproxima do surrealismo em livros como Tempo e Eternidade. A imagem da noite propaga-se por figurações diversas, como o caos do universo, o papel de forças inconscientes na criação artística e a constante ameaça da morte. Identificando-se com um “engenheiro noturno”, o poeta procura matéria que lhe permita reaproximar experiência e poesia.
Os ambientes noturnos remetem ao mito que dá título ao poema. Numa síntese do vínculo que Invenção guarda com Orfeu, Fábio de Souza Andrade (1965), principal intérprete do livro, afirma: “Jorge de Lima cultiva a ambiguidade essencial do mito de Orfeu, capaz de submeter a natureza pelo canto, mas permanentemente ameaçado de perder-se em seu seio, confundir-se com uma totalidade que o engolfa”. As oscilações do poema – entre temores e conquistas, estrutura polimorfa e hermetismo – seriam a marca de sua crítica, pois, no limite, o poeta oscila entre lamentar e celebrar a capacidade humana de criação. Na construção desse monumento às dificuldades da lírica, não há, ainda, nenhum poeta brasileiro que se equipare a Jorge de Lima.
Fontes de pesquisa 8
- ANDRADE, Fábio de Souza. O engenheiro noturno: a lírica final de Jorge de Lima. São Paulo: Edusp, 1997.
- ANDRADE, Fábio de Souza. Ovo de formiga, olho do sol. In: LIMA, Jorge de. A invenção de Orfeu. São Paulo: Cosac & Naify, 2013. p. 641-659.
- BISCHOF, Betina. O aspecto da (des)formação de uma ilha/país em Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima. Terceira margem, Rio de Janeiro, n. 21, p. 159-175, ago./dez. 2009.
- BOSI, Viviana. Orfeu e o gato: Jorge de Lima e Ana Cristina César, uma trajetória de releitura poética. Remate de Males, Campinas, n. 2, p. 195-229, 2000.
- CAMPOS, Augusto de. Poesia, antipoesia, antropofagia. São Paulo: Cortez e Moraes, 1978. p. 42-43.
- FAUSTINO, Mário. Revendo Jorge de Lima. In: LIMA, Jorge de. A invenção de Orfeu. São Paulo: Cosac & Naify, 2013.
- MENDES, Murilo. Os trabalhos do poeta. In: LIMA, Jorge de. A invenção de Orfeu. São Paulo: Cosac & Naify, 2013. p. 527-531.
- Wilson Martins. História da inteligência brasileira (1933-1960). 3. ed. Ponta Grossa: UEPG, 2010. v. 7. p.342.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
-
INVENÇÃO de Orfeu.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra12113/invencao-de-orfeu. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7