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Enciclopédia Itaú Cultural
Artes visuais

Antropofagia

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 27.01.2015
Reprodução fotográfica Romulo Fialdini

Floresta, 1929
Tarsila do Amaral
Óleo sobre tela, c.i.d.
63,90 cm x 76,20 cm
Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (SP)

No dia 11 de janeiro de 1928, a pintora Tarsila do Amaral oferece a Oswald de Andrade (1890 - 1954), como presente de aniversário, uma de suas recentes pinturas, sem saber que ela viria a ser a propulsora de uma das mais originais formulações teóricas sobre a natureza específica da arte moderna brasileira. Enquanto contemplava aquele estranho ho...

Texto

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Definição
No dia 11 de janeiro de 1928, a pintora Tarsila do Amaral oferece a Oswald de Andrade (1890 - 1954), como presente de aniversário, uma de suas recentes pinturas, sem saber que ela viria a ser a propulsora de uma das mais originais formulações teóricas sobre a natureza específica da arte moderna brasileira. Enquanto contemplava aquele estranho homem pintado por Tarsila, de pés enormes fincados na terra, cuja pequena cabeça parece apoiar-se melancolicamente em uma das mãos, cercado por um ambiente seco e quente, tendo como testemunha apenas o céu azul, o sol e um misterioso cacto verde, Oswald de Andrade foi indagado por seu amigo e escritor Raul Bopp (1898 - 1984), que o acompanhava na observação: "Vamos fazer um movimento em torno desse quadro?". Abaporu, 1928, que em tupi-guarani significa "antropófago", foi o nome escolhido para aquela figura selvagem e solitária.

Funda-se em seguida o, Clube de Antropofagia, juntamente com a Revista de Antropofagia, em que é publicado o Manifesto Antropófago escrito por Oswald de Andrade como o cerne teórico do movimento nascente, que se dissolve com a separação entre ele e Tarsila, em 1929. Com frases de impacto, o texto reelabora o conceito eurocêntrico e negativo de antropofagia como metáfora de um processo crítico de formação da cultura brasileira. Se para o europeu civilizado o homem americano era selvagem, ou seja, inferior, porque praticava o canibalismo, na visão positiva e inovadora de Andrade, exatamente nossa índole canibal permitira, na esfera da cultura, a assimilação crítica das idéias e modelos europeus. Como antropófagos somos capazes de deglutir as formas importadas para produzir algo genuinamente nacional, sem cair na antiga relação modelo/cópia, que dominou uma parcela da arte do período colonial e a arte brasileira acadêmica do século XIX e XX. "Só interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago", bradou o autor em 1928.

Em linhas gerais, o Modernismo da Semana de 22 caracteriza-se por uma dupla vocação: atualizar o ambiente artístico brasileiro, colocando-o em contato com as diversas linguagens das vanguardas européias e ao mesmo tempo voltar-se para apreensão do Brasil, em um projeto consciente de criação de uma arte brasileira autônoma. Uma proposta de equação entre as duas inclinações (internacionalista e nacionalista) já se encontra no centro do Manifesto Pau-Brasil, 1924, de Oswald de Andrade, no qual o autor resolve o problema da tensão entre a cultura civilizada e intelectual do colonizador e a nativa e primitiva do colonizado mediante um "acordo harmonioso que se produziria na realidade, graças a um processo de assimilação espontânea entre 'a floresta e a escola' ", como notou Benedito Nunes.

Se em 1928 o escritor não abandona por completo esse ideal utópico de síntese entre o modelo europeu e a experiência do primitivo, acrescenta-lhe, no entanto, o primitivismo como arma crítica seletiva, na imagem do selvagem que devora e assimila apenas o que interessa, destruindo todo o resto. Proclama - contra todas as "catequeses", todos os importadores de consciência enlatada, o Padre Vieira, as elites vegetais, a verdade dos povos missionários, o índio de tocheiro, Anchieta, Goethe, e a corte de D. João VI e, por fim, a realidade social, vestida e opressora - a "realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituição e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama". Pois se é inevitável a assimilação das conquistas da civilização moderna, é preciso que o brasileiro se eleve à cultura "desde que conserve as qualidades bárbaras das origens bugre e africana", como observou Mário Pedrosa.

Nota-se que Oswald de Andrade exerce esse mesmo procedimento antropofágico ao transformar o estigma de canibal em qualidade, afirmando-o positivamente como constituinte da essência desrecalcada brasileira. Naturalmente não é o primeiro a utilizar a imagem do antropófago. Esta é corrente na literatura européia dos anos 1920, valorizada sobre o pano de fundo da redescoberta das culturas primitivas da África, América e Oceania pelas vanguardas artísticas. A temática do canibalismo comparece em autores tão diversos quanto o poeta futurista Filippo Marinetti, o pintor surrealista Francis Picabia, que edita sua revista Cannibale em 1920, o poeta Blaise Cendrars, entre outros. Certamente o autor dialoga com o movimento europeu, mas confere a imagem originalidade quando a transforma em metáfora de um procedimento criativo, ativo e crítico, gerador de uma arte brasileira moderna e autônoma.

No caso de Tarsila do Amaral, o procedimento poético de sua pintura, dita antropofágica (1928 a ca.1929) - que além do Abaporu, compreende também O Ovo [Urutu], 1928, A Lua, 1928, Floresta, 1929, Sol Poente, 1929, Antropofagia, 1929, entre outras, e da qual A Negra, 1923 é considerada precursora - caracteriza-se pela "desarticulação da forma construtiva", mediante a submersão na "materialidade cultural" brasileira. Sem esquecer o aprendizado moderno de redução formal e planificação do espaço pictórico, a artista cria, com o uso estilizado de formas arredondadas e cores emblemáticas (principalmente tons fortes de amarelo, verde, azul, laranja e roxo), um alegre universo "selvagem", que se liga a um mundo onírico, mágico (das lendas indígenas e africanas), primitivo, profundamente enraizado na cultura popular brasileira. Entretanto, vale lembrar, seguindo a argumentação de Sônia Salzstein, que a fase "antropofágica" de Tarsila não deve ser considerada como simples ilustração de uma teoria. Seu próprio desenvolvimento artístico a teria levado a esse momento de relação crítica com o aprendizado francês, de certa forma antevendo plasticamente a plataforma antropofágica oswaldiana.

A partir dos anos 1930, com o agravamento da situação econômica e social com o craque da Bolsa de Nova York em 1929, do qual Oswald de Andrade é uma das vítimas, e a instauração do período getulista (1930-1945), a questão do "moderno" como tensão entre nacional e internacional toma outros rumos, sendo discutida em termos diversos, pelo menos até o fim dos anos 1960. Oswald renega o "sarampão antropofágico" durante os anos 1930, voltando a ele somente no fim da década de 1940. A idéia de antropofagia como procedimento estético só é conscientemente retomada, em meados dos anos 1960, com a montagem da peça O Rei da Vela, pelo Teatro Oficina, e o movimento tropicalista de 1967-1968. A institucionalização desse conceito dá-se em 1998 quando a 24ª Bienal Internacional de São Paulo, de maneira discutível, é organizada segundo o tema "Antropofagia e Histórias de Canibalismo", propondo a construção de uma outra história mundial da arte, ou seja, uma história que adotasse um ponto de vista não-eurocêntrico. Propõe-se então a atualização e, curiosamente, a internacionalização da antropofagia oswaldiana.

Obras 7

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Reprodução fotográfica Romulo Fialdini

A Lua

Óleo sobre tela
Reprodução fotográfica Romulo Fialdini

A Negra

Óleo sobre tela
Reprodução fotográfica Romulo Fialdini

Abaporu

Óleo sobre tela
Reprodução fotográfica Romulo Fialdini

Antropofagia

Óleo sobre tela
Reprodução fotográfica Romulo Fialdini

Floresta

Óleo sobre tela

Fontes de pesquisa 8

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  • AMARAL, Aracy. Artes plásticas na Semana de 22. 5. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 1998.
  • AMARAL, Tarsila do. Tarsila do Amaral. São Paulo: Finambrás, 1998. 225 p., il. color. (Projeto Cultural Artistas do Mercosul).
  • ANDRADE, Oswald. Obras Completas: a utopia antropofágica. Introdução de Benedito Nunes. São Paulo: Globo, 1990.
  • BIENAL INTERNACIONAL DE SÃO PAULO, 24. , 1998, São Paulo. Núcleo histórico: antropofagia e histórias de canibalismos. Curadoria Paulo Herkenhoff, Adriano Pedrosa. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998.
  • DA antropofagia a Brasília: Brasil 1920-1950. Curadoria geral Jorge Schwartz; curadoria Annateresa Fabris, Carlos Augusto Calil, Carlos A. Ferreira Martins, Jean-Claude Bernardet, Jorge Schwartz, Rubens Fernandes Júnior, José Miguel Wisnik; tradução Elizabeth Power, Gênese Andrade, Karel Clapshaw, Lucia Wataghin, Marianne Fischer, Regina Salgado Campos, Stella E. O. Tagnin. São Paulo: FAAP : Cosac & Naif, 2002.
  • NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
  • PEDROSA, Mário. Acadêmicos e modernos: textos escolhidos III. Organização Otília Beatriz Fiori Arantes. São Paulo : Edusp, 1998.
  • ZILIO, Carlos . Da antropofagia à tropicalia. In: _______. O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense. 1982. p.11-56.

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