Ana Maria Gonçalves
Texto
Ana Maria Gonçalves (Ibiá, Minas Gerais, 1970). Escritora. Sua produção literária se caracteriza pelo caráter intimista, quase autobiográfico, das narrativas e resulta de densas pesquisas sobre as heranças africanas deixadas no Brasil. Tais estudos e as obras que deles decorrem fazem da autora uma voz contra-hegemônica no campo da literatura nacional.
Leitora assídua por influência da mãe, ainda na juventude ensaia os primeiros textos literários, mas os abandona quando decide estudar publicidade. Já adulta, muda-se para a cidade de São Paulo, onde trabalha durante 13 anos como redatora e revisora publicitária.
Em 2002, cansada da rotina extenuante em agências de publicidade, decide viver na Bahia, inicialmente em Salvador e depois na Ilha de Itaparica, arquipélago vizinho à capital do estado. Em Itaparica, escreve seu primeiro romance, Ao lado e à margem do que sentes por mim (2002), lançado de maneira independente, em edição artesanal. O livro, com tiragem única e esgotada de mil exemplares, é uma obra intimista, com características de ficção autobiográfica. Ele conta a história de uma mulher que decide fazer uma grande mudança na vida para tentar se descobrir. Em 310 páginas, recupera os cenários geográficos e culturais do interior do Brasil, em especial de Minas Gerais e da Bahia, por meio de festejos e tradições vivenciados pela personagem Ana com a intensidade da busca realizada por ela.
A obra mescla uma escrita profundamente subjetiva, composta de questionamentos existenciais da protagonista sobre o amor romântico e sobre as consequências geradas pelo fim desse sentimento. Também contém memórias remotas da infância e da juventude da narradora, descritas de modo a elaborar um presente que não seja descolado do passado. O tempo e espaço retratados são descritos de forma detalhada, uma característica de destaque na produção literária da autora.
Ainda vivendo na Ilha de Itaparica, Ana Maria inicia uma pesquisa documental e de campo para escrever seu segundo romance, Um defeito de cor. Vencedor do Prêmio Casa de las Americas em 2007, o livro torna Ana Maria Gonçalves uma das mais lidas e comentadas escritoras brasileiras contemporâneas. Ao escolher contar a história de Kehinde, personagem narradora e protagonista da trama que se passa durante mais de oito décadas do século XIX, Ana Maria deseja criar uma obra literária que retrate a formação da nação brasileira do ponto de vista de uma mulher africana escravizada. Nesse sentido, ela “constrói um recurso ficcional que dá palavra contra o silêncio que a História relegou às mulheres negras”1.
Tal recurso ficcional se delineia de modo limítrofe e suplementar à narrativa histórica do Brasil colônia e do sistema escravista vigente à época. Essa característica estrutural do romance possibilita a discussão levantada pela professora de literatura da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Fabiana Carneiro da Silva. A análise defende que, com base em um interesse pessoal pela Revolta dos Malês, rebelião de negros muçulmanos escravizados ocorrida em Salvador em 1835, Ana Maria borra as fronteiras entre ficção e realidade e funde sua criação ficcional com fatos históricos. Assim, permite à crítica literária algumas chaves de interpretação sobre como essa fusão serve a novos entendimentos da literatura de autoria negra2 e seus devires.
A construção da personagem Kehinde, africana raptada no início do século XIX no Reino de Daomé, atual Benin, e que em terras brasileiras se transforma na icônica figura de Luísa Mahin, é o mote para o processo de subjetivação com o qual Ana Maria Gonçalves interpela a si mesma3. Como mulher negra, inserida em uma sociedade brasileira que ainda crê na existência de uma democracia racial, a autora encontra na escrita literária sua identificação racial como um posicionamento político e se torna figura pública ativa na luta antirracista no Brasil.
No ano de 2019, o texto teatral Pretoperitamar – O caminho que vai dar aqui, de autoria de Ana Maria Gonçalves e da atriz e diretora mineira Grace Passô (1980), ganha montagem sob direção artística de Grace. Idealizado pela compositora e cantora Anelis Assumpção (1980), o espetáculo cênico-musical conta a trajetória do artista Itamar Assumpção (1949-2003) e celebra os 70 anos de seu nascimento. A peça é a primeira encenação de uma obra de dramaturgia assinada por Ana Maria e, não por acaso, debruça-se especialmente sobre a experiência de Itamar como artista negro em um ambiente cultural permeado pelo racismo.
Presença cada vez mais constante nos debates culturais e acadêmicos sobre as profundas desigualdades raciais que ainda definem a sociedade brasileira, a autora se apropria com destreza do fazer literário para demarcar territórios e abrir possibilidades às presenças, vozes e escritas de outras mulheres negras.
Nota
1. MIRANDA, Fernanda R. Silêncios PrEscritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006). Rio de Janeiro: Malê, 2019. p. 298.
2. SILVA, Fabiana Carneiro da. OMINIBÚ: maternidade negra em Um defeito de cor. Salvador: EDFUBA, 2019. p. 47.
3. GONÇALVES, Ana Maria. Uma ficção à procura de suas metáforas. Suplemento Pernambuco, Recife, n. 132, fev. 2017. Disponível em: https://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/67-bastidores/1783-uma-fic%C3%A7%C3%A3o-%C3%A0-procura-de-suas-met%C3%A1foras.html. Acesso em 22 jul. 2020.
Obras 2
Exposições 3
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10/9/2023 - 27/8/2022
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6/11/2024 - 3/3/2023
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25/4/2024 - 1/12/2024
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Fontes de pesquisa 10
- GONÇALVES, Aline Najara da Silva. Luiza Mahin entre ficção e história. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Universidade Estadual da Bahia, Salvador, 2010. Disponível em: http://www.mocambos.net/w/images/5/54/Luiza_mahin.pdf. Acesso em: 19 out. 2015.
- GONÇALVES, Ana Maria. Ao lado e à margem do que sentes por mim. Salvador: Borboletras, 2002. Disponível em: http://anamariagoncalves.blogspot.com/. Acesso em: 6 jul. 2020
- GONÇALVES, Ana Maria. Depoimento gravado em junho de 2016 no Espaço Itaú Cultural de Literatura, na Festa Literária Internacional de Paraty, em Paraty/RJ. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/ana-maria-goncalves-flip-2016. Acesso em: 4 jul. 2020.
- GONÇALVES, Ana Maria. Entrevista concedida pela escritora Ana Maria Gonçalves a Danilo Bueno. São Paulo, 15 out. 2015.
- GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006.
- GONÇALVES, Ana Maria. Uma ficção à procura de suas metáforas. Suplemento Pernambuco, Recife, n. 132, fev. 2017. Disponível em: https://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/67-bastidores/1783-uma-fic%C3%A7%C3%A3o-%C3%A0-procura-de-suas-met%C3%A1foras.html. Acesso em: 5 jul. 2020
- LIMA, Dulcilei da Conceição. Desvendando Luísa Mahin: um mito libertário no cerne do feminismo negro. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2011. Disponível em: http://tede.mackenzie.com.br/tde_arquivos/6/TDE-2011-11-22T114332Z-1279/Publico/Dulcilei%20da%20Conceicao%20Lima.pdf. Acesso em: 14 out. 2015.
- MIRANDA, Fernanda R. Silêncios PrEscritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006). Rio de Janeiro: Malê, 2019.
- NETO, Armam. Site Impressões de Maria. São Paulo, 2018. Disponível em: https://www.impressoesdemaria.com.br/2018/08/sobre-ao-lado-e-margem-do-que-sentes.html. Acesso em: 4 jul. 2020
- SILVA, Fabiana Carneiro da. OMINIBÚ: maternidade negra em Um defeito de cor. Salvador: EDFUBA, 2019.
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ANA Maria Gonçalves.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa482564/ana-maria-goncalves. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7