Divina Valéria

Divina Valéria, 2023
Texto
Divina Valéria (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1944). Atriz, cantora, drag queen, performer. Integrante da primeira geração de travestis artistas no Brasil, Valéria marca presença em espetáculos de variedades, com destaque para o canto.
Já inclinada ao universo da mulher, Valéria veste pela primeira vez roupas consideradas femininas em uma festa de Carnaval, ao tomar emprestado da atriz Darlene Glória um vestido e uma peruca, artigo raro no Brasil. Fica com o acessório e, quando sozinha em casa, se posta à janela para ser vista pelos transeuntes.
Na juventude, fascina-se pelo universo artístico, sobretudo o de programas de rádio com suas intérpretes, como Dalva de Oliveira (1917-1972) . A sua identidade de gênero gera atritos com o padrasto, que a expulsa de casa. O mundo artístico se torna opção possível de sobrevivência e descoberta. A mãe a emancipa para garantir que possa trabalhar na noite, pois a lei no período não permite que pessoas menores de 21 anos desempenhe funções no período noturno.
Começa cantando em boates e substitui uma performer em International Set (1964), criação de Mario Meira Guimarães (1919-1983) com direção de Luís Haroldo. No mesmo ano, surge o convite para integrar o elenco de Les Girls, criado pela dupla do trabalho anterior. Essa obra apresenta pela primeira vez as travestis como atrizes no palco, superando a condição habitual de artistas de shows de variedades típicos do teatro de revista. No elenco já brilham nomes que viriam a se tornar marcantes nesse tipo de show e na arte do transformismo no Brasil: Rogéria (1943-2017), Marquesa (1945-2015) e Brigitte de Búzios (1944-2018).
Com o início da ditadura militar (1964-1985)1 no Brasil, artistas com obras com tendências políticas sentem o avanço da repressão, que impede a divulgação de sua arte e, algumas vezes, até os obriga a sair do país. Surpreendentemente, a redução de opções de diversão artística causada pela repressão fez fomentar o que Valéria chama de “sensação travesti” no Rio de Janeiro. Os shows com esquetes teatrais, números cômicos, dublagens e canções ao vivo protagonizados pelas travestis se popularizam e passam a lotar os teatros. Apesar do sucesso nas bilheterias, as artistas enfrentam a censura dos veículos de comunicação, que não permite que elas apareçam em entrevistas, fotos e programas televisivos.
Ao sair pelas ruas da região central da capital paulista vestida conforme sua identidade, Valéria chega a ser presa pela polícia. Como já é conhecida pela população, seu caso repercute nos jornais e ganha maior exposição no programa do apresentador Silvio Santos (1930). Na matéria na TV, pessoas são questionadas se ela deve ou não estar em espaços públicos durante o dia com as roupas que correspondem à feminilidade.
O Les Girls excursiona por capitais brasileiras e países no exterior, como Uruguai e Espanha. Em Barcelona, a artista é indicada para trabalhar em Paris e logo é absorvida pelo Le Carrousel de Paris, icônica casa da arte travesti que reúne artistas de diversas nacionalidades entre as décadas de 1970 e 1980. Em pouco tempo, Divina Valéria se torna uma das estrelas principais da casa. Ao longo dos 20 anos morando na capital francesa, tem contato com a elite intelectual da época, atraída pela efervescência do comportamento da cidade. Nesse período, chega a posar para Di Cavalcanti (1897-1976), que a registra em uma pintura. Segue viajando com seus trabalhos e na capital uruguaia é convidada para um espetáculo individual cujo título Divina Valéria ela toma como nome próprio.
A Música sempre teve preferência em suas performances e trata esse gosto como um dom. Ainda no começo de carreira com Les Girls, torna-se a primeira travesti a gravar um disco compacto no Brasil ao registrar canções que canta no espetáculo. Fluente em francês e admiradora de outras línguas, seu repertório passeia por sucessos tradicionais da música brasileira, francesa e espanhola, além da obra de artistas contemporâneos.
Em 2016, a atriz Leandra Leal (1982) dirige o documentário Divinas Divas em que reúne a geração de Valéria para um reencontro no Teatro Rival, um espaço há décadas administrado por sua família e em cujo palco tantas travestis puderam se apresentar. No longa-metragem Divina Valéria, Rogéria (1943-2017), Marquesa (1945-2015), Brigitte de Búzios (1944-2018), Jane di Castro (1947-2020), Eloína dos Leopardos (1937), Camille K. (1945) e Fujica de Holliday (1943-2023) relembram suas trajetórias e ensaiam para o espetáculo que dá nome ao filme. O projeto se estende para uma apresentação em 2020 no Theatro Municipal de São Paulo, dirigida por Robson Catalunha (1985) e com a participação das atrizes convidadas Divina Núbia (1964) e Márcia Dailyn (1978).
Participa de filmes como Rio Babilônia (1982), de Neville de Almeida (1941), e Cidade Baixa (2005), de Sérgio Machado (1968). Em 2019, atua no curta Marie, do diretor pernambucano Leo Tabosa, ajudando a contar a história de uma jovem transexual, interpretada por Wallie Ruy (1986), que retorna à cidade de origem e tenta refazer um laço de amizade da infância com o personagem de Romulo Braga (1976). O filme recebe quatro troféus no Festival de Cinema de Gramado, um deles dado como um prêmio especial do júri para Valéria e Wallie pela interpretação.
Durante a pandemia de covid-19, a artista apresenta em modo virtual o espetáculo Divina Valéria para celebrar sua trajetória. O trabalho tem direção de Ivam Cabral (1963), piano de Carlos Blauth e conta com participações de vários artistas, como Patrícia Pillar (1964), Maria Clara Spinelli (1975) e Sérgio Guizé (1980), enquanto passeia pelo repertório de nomes famosos da música, como a francesa Edith Piaf (1951-1963) e os brasileiros Caetano Veloso (1942) e Gilberto Gil (1942). Em 2021, é homenageada com o lançamento de sua biografia Divina Valéria escrita pela dupla Os Albertos (Alberto Camarero [1950] e Alberto de Oliveira [1992]) e, no ano seguinte, é escalada para participação na novela Travessia, da Rede Globo, assinada por Glória Perez (1948), interpretando a si mesma em um universo ficcional que conhece bem: dona de uma boate que incentiva a expressão de outras artistas e aconselha a protagonista vivida por Lucy Alves (1986).
Testemunha de inúmeras transformações de comportamento e nos diversos campos da arte performativa, Divina Valéria se instala na memória brasileira como integrante de uma geração que quebra barreiras e se impôe pelo talento. O reconhecimento artístico nacional e internacional e sua atuação em teatro, cinema, televisão e música corroboram para a permanência do seu legado que se perpetua em tantas outras artistas travestis.
Nota
1. Também denominada de ditadura civil-militar por parte da historiografia com o objetivo de enfatizar a participação e apoio de setores da sociedade civil, como o empresariado e parte da imprensa, no golpe de 1964 e no regime que se instaura até o ano de 1985.
Espetáculos 8
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6/1964 - 8/1964
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Espetáculos virtuais 1
Mídias (1)
Cada voz
A série “Cada voz” é um projeto da "Enciclopédia Itaú Cultural" com registros de depoimentos de artistas de diferentes áreas de expressão, como literatura, música, teatro e artes visuais. Conduzidos pelo fotógrafo Marcus Leoni, os vídeos capturam o pensamento dos artistas sobre seu processo de criação e sua visão sobre a própria trajetória. Os registros aproximam o público do artista, que permite a entrada no camarim, no ateliê ou na sala de escrita.
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Interpretação em Libras: Ponte Acessibilidade (terceirizada)
Transcrição, revisão e sincronização de legendas: Alume Comunicação e Acessibilidade (terceirizada)
Direção, edição e fotografia: Marcus Leoni
Produção: Carol Silva
Montagem: Renata Willig
Assistência: Rafael Macedo
Fontes de pesquisa 7
- Artista LGBTQIA+ histórica, Divina Valéria celebra quase 6 décadas de carreira em espetáculo digital. SP Escola de Teatro, São Paulo, 19 ago. 2023. Disponível em: https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/artista-lgbtqia-historica-divina-valeria-celebra-quase-6-decadas-de-carreira-em-espetaculo-digital. Acesso em: 06 nov. 2023.
- DIVINA Valéria. Filmow, [s.l.], [s.d.]. Disponível em: https://filmow.com/divina-valeria-a103266/. Acesso em: 06 dez. 2023.
- DIVINAS Divas. Direção: Leandra Leal. Rio de Janeiro: Daza Filmes, 2016. (110 min), son., color.
- ITAÚ CULTURAL (org.). Rainhas da noite: uma homenagem à cultura Drag Queen. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. 96 p. (Todos os gêneros: mostra de arte e diversidade). Disponível em: https://issuu.com/itaucultural/docs/publicacao_digital_tg_2023_af_1_. Acesso em: 04 out. 2023.
- MORANDO, Luiz. Les Girls é ter charme, touché!. Albuquerque: Revista de história, vol. 13, n. 26, jul/dez. 2021. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/AlbRHis/article/view/14498. Acesso em: 29 out. 2023. Acesso em: 30 out. 2023.
- TBT: Relembre o lançamento da biografia de Divina Valéria na SP Escola de Teatro, em 2021. SP Escola de Teatro, São Paulo, 19 jan. 2023. Disponível em: https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/tbt-relembre-o-lancamento-da-biografia-de-divina-valeria-na-sp-escola-de-teatro-em-2021. Acesso em: 06 dez. 2023.
- THEATRO MUNICIPAL. Programação. Complexo Theatro Municipal. Divinas Divas - Verão sem censura. 29 jan. 2020. Disponível em: https://theatromunicipal.org.br/pt-br/evento/divinas-divas-verao-sem-censura/. Acesso em: 06 dez. 2023.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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DIVINA Valéria.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa480640/divina-valeria. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7