Que bom te ver viva
Texto
Que bom te ver viva (1989) é o primeiro filme de longa-metragem dirigido pela cineasta Lúcia Murat (1949), lançado cerca de quatro anos após o fim do regime instituído pela Ditadura Militar (1964-1985)1 e no mesmo ano da primeira eleição presidencial por voto direto e popular. Destaca-se por ser o primeiro documentário a tratar da tortura de mulheres presas políticas durante a fase mais violenta da ditadura.
Em formato híbrido de documentário e ficção, Que bom te ver viva intercala os testemunhos e traumas pessoais de oito mulheres que vivenciaram a tortura com o monólogo ficcional de outra mulher torturada, alter ego da própria diretora, também presa e torturada na mesma época. Os depoimentos das oito mulheres são filmados em vídeo e com os rostos enquadrados em formato 3x4, o que remete às fotos dos “terroristas” e subversivos” em fichários montados pelos agentes da repressão política.
O monólogo da ex-presa política Irene, interpretada por Irene Ravache (1944), se passa em um único espaço cênico, onde acontece a ação dramática da personagem, que se dirige sempre ao espectador. A luz e a fotografia cênicas reforçam a ideia de um espaço “fora do mundo”, no inconsciente coletivo que une todas as mulheres que sofreram tortura física, psicológica e sexual nos chamados “porões da ditadura”2.
Murat se empenha em dar nome, rosto e voz às histórias de Maria do Carmo Brito, Estrela Bohadana, Maria Luzia Rosa, Rosalina Santa Cruz, Criméia de Almeida, Jessie Jane, Regina Toscano e uma mulher anônima, que se manifesta por escrito. É a única forma de tentar romper a imposição de um silêncio em relação à tortura como política de Estado, que angustia todas essas mulheres, pois seus testemunhos não encontram escuta. Paradoxalmente, não se tem direito à memória, nem ao esquecimento3.
Reconstruir a vida com estudos, trabalhos e atividades pelas quais continuam, de certa forma, engajadas em um projeto de país melhor e mais justo é um caminho que todas as resistentes do filme de Murat assumem após a prisão e a tortura. Mas, para além da visão tradicional e romantizada, a experiência da maternidade, seja dentro da prisão ou depois de deixá-la para trás, é transformadora para várias delas, uma vez que a possibilidade de gerar vida é percebida como uma vitória sobre os torturadores, a qual responde de forma contundente à ameaça de morte e de aniquilação da dignidade e humanidade na experiência da tortura. Mesmo na prisão, onde fabricam a morte, seus algozes não podem evitar que a vida surja no mundo
A ideia do filme nasce entre o final de 1984 e início de 1985, após os quatro anos de psicanálise da cineasta, em busca de uma maneira de sobreviver aos traumas deixados pela tortura, que persistem em sua memória. No entanto, Murat opta por não mostrar no filme qualquer cena de tortura: essa violência é tratada pela palavra e pelo sentimento, não pela ação e pela descrição, que já são de conhecimento de muitos por meio de iniciativas como o projeto Brasil: Nunca Mais4.
O lançamento do filme acontece em junho de 1989, durante sua exibição no 17º Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, mas sua consagração ocorre no 22º Festival de Cinema de Brasília com a conquista dos prêmios de melhor filme do júri popular, do júri oficial e da crítica, melhor atriz para Irene Ravache e melhor montagem para Vera Freire (1950). O tema político, remetendo aberta e diretamente às atrocidades da ditadura recém terminada, torna o filme extremamente significativo para um momento de reflexão social e política sobre um país que ainda precisa contar e identificar seus mortos.
Isso é ainda mais verdadeiro quando se tem em mente que o documentário é consagrado no festival de cinema de Brasília, centro do poder da República, apenas uma semana antes do segundo turno que elegerá o primeiro presidente da redemocratização do país, Fernando Collor de Mello (1949), que se torna responsável pela paralisação quase total da produção do cinema nacional no início dos anos 1990, ao extinguir a Embrafilme.
Na ocasião do lançamento do documentário, o sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), declara, em matéria do jornal O Globo, que o filme deveria ser exibido nos programas dos tribunais regionais eleitorais para que ninguém pudesse esquecer o que aconteceu e assim evitar que a história se repita no futuro.
Os temas relacionados à Ditadura Militar, sempre a partir da memória pessoal – mas também social – de Lúcia Murat, povoam os filmes da cineasta com os testemunhos dos traumas causados pelo regime. Pioneiramente, Que bom te ver viva abre um caminho de denúncia e reflexão social sobre a tortura e suas marcas nas pessoas submetidas as violências do regime militar, exatamente no momento em que se inicia a redemocratização do país, impactando enormemente o debate público sobre o tema.
Notas
1. Denominada de ditadura civil-militar por parte da historiografia com o objetivo de enfatizar a participação e apoio de setores da sociedade civil, como o empresariado e parte da imprensa, no golpe de 1964 e no regime que se instaura até o ano de 1985.
2. A abertura do documentário apresenta imagens impactantes em preto e branco sobre as quais os créditos em vermelho vivo já prenunciam o peso e a ameaça do período ditatorial. O fluxo dos testemunhos e do monólogo intercalados também é interrompido, ao longo de todo o filme, por imagens fixas em preto e branco, como recortes de jornais com matérias alinhadas à retórica do regime militar, referindo-se aos “terroristas” que ameaçam a segurança nacional. Outras imagens, com elementos que evocam a prisão e a tortura, surgem à medida que se passa de um tópico a outro nos depoimentos: porta da cela (entrada na prisão), coturnos, bandeja de comida quase vazia, baratas, porta da prisão (saída dela). No entanto, não há nenhuma cena de tortura, pois, segundo Lúcia Murat, a descrição dela já é fartamente conhecida àquela altura, ao contrário da experiência individual e subjetiva de quem havia sido submetido a ela.
3. Outro silêncio significativo é sobre a própria presença e participação de mulheres na resistência e na luta armada contra a ditadura. A produção cinematográfica nacional sobre essa luta destaca especialmente homens como Carlos Lamarca (1937-1971) e Carlos Marighella (1911-1969), mas não dá a mesma evidência e protagonismo às mulheres que estiveram na mesma luta e que permanecem invisibilizadas no resgate histórico e político dessa época. Quando se fala das histórias das mulheres que lutaram contra a ditadura, percebe-se que o tema só é tratado mais amplamente a partir dos anos 2000, com filmes como Zuzu Angel (2006), de Sérgio Rezende (1951), Repare bem (2012), documentário de cineasta portuguesa Maria de Medeiros (1965), Em busca de Iara (2013), documentário de Flávio Frederico (1969), e Atrás de portas fechadas (2014), documentário de Danielle Gaspar e Krishna Tavares.
4. Entre 1979 e 1985, o projeto Brasil: Nunca Mais reúne e sistematiza as informações contidas em mais de um milhão de páginas em 77 processos do Supremo Tribunal Militar (STM), gerando um relatório que demonstra, de forma contundente, a extensão da violência da repressão do Estado.
Fontes de pesquisa 32
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QUE bom te ver viva.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra73099/que-bom-te-ver-viva. Acesso em: 07 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7