Lúcia Murat
Texto
Lúcia Maria Murat Vasconcellos (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1948). Diretora de cinema, roteirista. Trata de temas autobiográficos, relacionando sua trajetória de vida com fatos históricos do país. Seus filmes abordam temas sociais e políticos, a partir de um ponto de vista humanista, que se relaciona com sua formação de esquerda nos anos 1960. Destacam-se os títulos que tratam da ditadura militar no Brasil (1964-1985), da repressão e da tortura.
Em 1967, começa a estudar economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ingressa no movimento estudantil. Em 1968, é presa pela primeira vez no 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna, São Paulo. Após a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro do mesmo ano, passa a viver clandestinamente, é expulsa da universidade e parte para a guerrilha. Em 1971, é presa novamente e é torturada no Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).
Libertada em 1974, retoma os estudos. Consegue uma transferência para a Universidade Federal Fluminense (UFF), onde cursa os últimos dois anos e se forma economista, profissão que nunca exerce. Em contrapartida, começa a exercer o ofício de escritora, como articulista em periódicos como o Jornal do Brasil e as revistas Opinião e Movimento. Em 1978, capta as imagens do documentário O pequeno exército louco (1984), sobre a luta da guerrilha na Nicarágua. Processada pelo Estado por suas atividades como militante, acaba sendo anistiada em 1979.
No início dos anos 1980, faz documentários para a TV Educativa e a Bandeirantes. No final da década, escreve e dirige Que bom te ver viva (1989), um bom exemplo de como o tema da memória é marcante em sua obra, baseando-se na relação entre sua experiência, a história contada em retrospectiva e o tempo presente. O filme articula depoimentos reais de ex-presas políticas torturadas com comentários ficcionais de uma personagem anônima, interpretada por Irene Ravache (1944), para condensar nesta personagem o que se assiste nos depoimentos: a experiência traumática vivida na ditadura, as marcas do passado no tempo presente, os projetos de futuro. O filme conquista o Troféu Candango de melhor filme no Festival de Brasília, um reconhecimento que Murat considera inesquecível.
Durante a década de 1990, faz documentários em curta e média metragens, sempre tematizando problemas do Brasil. Durante o período conhecido como retomada do cinema brasileiro, dirige o longa de ficção Doces poderes (1996), sobre uma jornalista que comanda um canal de televisão em período eleitoral e precisa lidar com questões ideológicas e éticas.
A partir de então, dedica-se integralmente à realização de longas-metragens para o cinema, tais como Brava gente brasileira (2000), que retrata a relação conflituosa entre portugueses e indígenas no século XVIII, Quase dois irmãos (2004) e Uma longa viagem (2011).
Uma longa viagem, que ganhou o Kikito de melhor filme no Festival de Gramado, entre outros prêmios, é um documentário que trata de três jornadas. Na primeira, a diretora volta aos anos 1960 e 1970 para abordar a relação com seus dois irmãos. Na segunda, o foco é um desses irmãos, um andarilho que roda o mundo experimentando drogas de todo tipo. A terceira gira em torno da ditadura civil-militar, as relações entre as classes sociais, o posicionamento das pessoas diante desse contexto. Em todas elas, há uma tentativa de reordenar o afeto a partir do tempo.
O também premiado Quase dois irmãos, que venceu, entre outros, o troféu de melhor título ibero-americano no Festival de Mar de Plata, Argentina, retrata a amizade entre as famílias de Jorginho, negro e morador da favela, e Miguel, branco de classe média, no Rio de Janeiro. A partir desse núcleo, aborda a atuação da militância de esquerda durante o regime civil-militar e suas consequências no presente. A trama chama a atenção para os valores que separam essa militância das classes pobres.
O distanciamento e seus efeitos aparecem simbolizados no reencontro e convívio de Miguel, preso político, com Jorginho, preso comum, na prisão de Ilha Grande nos anos 1970. O choque cultural leva o grupo de Miguel a construir um muro que o separa dos presos comuns. Jorginho escolhe ficar ao lado dos comuns e funda a facção criminosa Comando Vermelho.
Lúcia Murat, cineasta premiada e politizada, constrói sua filmografia principalmente a partir das reflexões e lembranças oriundas de sua atuação no movimento estudantil dos tempos da ditadura, quando foi presa e torturada, e do Brasil que ela vê emergir após a redemocratização. Este cinema autoral, de memória, toma forma tanto em em dramas fictícios quanto em documentários.
Notas
1. Também denominada de ditadura civil-militar por parte da historiografia com o objetivo de enfatizar a participação e apoio de setores da sociedade civil, como o empresariado e parte da imprensa, no golpe de 1964 e no regime que se instaura até o ano de 1985.
Fontes de pesquisa 8
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LÚCIA Murat.
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