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Enciclopédia Itaú Cultural
Literatura

Poema Sujo

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 17.11.2022
1976
Com Poema Sujo (1976), Ferreira Gullar (1930) consolida seu lugar entre os grandes da poesia brasileira moderna. A obra une as tradições modernista e de vanguarda à urgência do momento histórico. De fluência contundente, é forjada pelo esforço da luta com as palavras e pela memória. É escrita no exílio do poeta em Buenos Aires (Argentina), em 19...

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Com Poema Sujo (1976), Ferreira Gullar (1930) consolida seu lugar entre os grandes da poesia brasileira moderna. A obra une as tradições modernista e de vanguarda à urgência do momento histórico. De fluência contundente, é forjada pelo esforço da luta com as palavras e pela memória. É escrita no exílio do poeta em Buenos Aires (Argentina), em 1975, quando a situação política brasileira se deteriora e a prisão de Gullar por agentes da ditadura torna-se iminente. Poema Sujo tem por fundo a dor da suspensão da vida e a necessidade – palavras do próprio poeta – de produzir “um poema que fosse o meu testemunho final, antes que me calassem para sempre”.  

É nessa perspectiva que se enquadra o impulso do poema, o desejo de “resgatar a vida vivida”, fazer presente o passado. Para tanto, Gullar recupera a memória afetiva e social de São Luís, sua cidade natal. Não se trata de rememorar episódios e circunstâncias com ponderação, mas de construir um personagem de si mesmo. A partir das palavras que abrem o poema, estende-se um campo dramático:

turvo turvo 

a turva  

mão do sopro 

contra o muro 

escuro  

menos menos

menos que escuro. 

Os versos, repletos de assonâncias, tornam indissociável ritmo e razão. Esta, busca a produção do sentido no encadeamento sonoro. 

Na obra, presente e passado, pensamento e ritmo, sentido e som tornam-se método. Expõem um conjunto fragmentado de memórias e reflexões, de cuja fluência salta a imagem da cidade. Uma São Luís antiga, construída pela memória afetiva de lugares e personagens (anônimas ou familiares). A ela, juntam-se e os conceitos de sociabilidade e o posicionamento político de Gullar, formando o todo sinfônico de Poema Sujo. Segundo Eleonora Ziller Camenietzki, o livro divide-se em quatro movimentos. No primeiro, “Arte e Vida”, o sujeito lança-se de modo indistinto (“turvo turvo”) às “mais prosaicas recordações, de atos banais ou marginais”[1]. Constam desse movimento as primeiras relações sexuais, a reunião familiar à mesa, o espaço humilde da casa às quais se unem questionamentos sobre o corpo, como natureza anterior à arte, porém a sua espera. No segundo, Paisagens Modernistas”, encabeçado por “claro claro / mais que claro / raro”, as lembranças de menino são nítidas. O movimento tem relação com índices de modernidade, dos quais se destaca o trem que atravessa o sertão e empresta seu ritmo tanto à melodia de Bachianas n. 3, Tocatta2, de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), quanto às palavras de Gullar. Chegando ao terceiro e quarto movimentos, os quadros da juventude incidem sobre as relações sociais e suas contradições como fundamento da vida urbana. Antes, os motes do poema trazem um esforço de precisão (do “turvo” ao “claro”), acompanhado de formação individual (do sentimento confuso do corpo à primeira consciência de si). Agora, a tensão incide na síntese do uno e do plural. Passa-se a falar dos “muitos dias” que existem “num dia só”, assim como das tardes, noites e cidades que multiplicam e complicam a forma simples, una e abstrata. Nesse movimento, São Luís descobre-se na noite dos miseráveis do bairro Baixinha e da classe média local. Do mesmo modo, a memória do pai cinde entre o homem despreocupado na quietude de sua quitanda e os aviões norte-americanos que atravessam o céu do Maranhão indiferentes às pequenezas locais. Resta a imagem final do poema, a cidade que “se move / em seus muitos sistemas / e velocidades”, todos feitos  da vida humana, múltipla e particular. Não cabem mais idealizações, somente a sujeira de que se faz o tempo histórico. 

A recepção crítica de Poema Sujo parte do entendimento político de seus atributos poéticos, não se limitando a questões de obra e contexto. Alcides Villaça (1946) reconhece o esforço crítico (“não idílico”) de Gullar, inerente à reunião de “linguagem febril e rigor dialético”. Isso, a seu ver, marca a duplicidade da ideia de “sujo”, que transita entre a força bruta do corpo e a convicção de uma consciência material e temporalmente constituída. Tal leitura é requalificada, por Tito Damazo (1948), que encara a obra como “poema polifônico e polimórfico”3, com “estilo plural”, calcado na tradição prosaica do modernismo e nos registros da linguagem cotidiana. Eleonora Camenietzki também vê no poema a síntese de movimentos internos à obra de Gullar, sejam eles técnicos (a primazia da comunicabilidade como parte da prática poética) ou ideológicos (a adesão do poeta ao Partido Comunista Brasileiro, PCB). 

Poema Sujo representa a consagração de um grande poeta e ativista num dos momentos mais dramáticos da história brasileira. Nele, Gullar empreende um salto qualitativo para a renovação dos debates sobre a tradição literária, reacendidos pelo modernismo. Ele eleva as conquistas técnicas de seus predecessores pela formação de uma poética dramática e pelo esforço de libertação subjetiva ímpares.

Notas

1. CAMENIETZKI, Eleonora Ziller. Poesia e política: a trajetória de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2006. P.139.

2. Bachiana n. 3, Tocatta (1938), mais conhecida como Trenzinho do Caipira. 

3. DAMAZO, Tito. Ferreira Gullar, uma poética do sujo. São Paulo: Nanquin Editorial, 2006. p. 21.

Mídias (1)

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Leitura de poema por Ferreira Gullar - Jogo de Idéias

Fontes de pesquisa 4

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  • BIBLIOTECA Nacional Digital: Acervo Obras Gerais. Disponível em: http://acervo.bn.gov.br/sophia_web/. Acesso em: 17 nov. 2022.
  • CAMENIETZKI, Eleonora Ziller. Poesia e política: a trajetória de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2006.
  • DAMAZO, Tito. Ferreira Gullar, uma poética do sujo. São Paulo: Nanquin Editorial, 2006.
  • VILLAÇA, Alcides. Em torno do Poema Sujo. In: Encontros com a civilização brasileira. Rio de Janeiro, n.9, 1979.

Como citar

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