Antes do Baile Verde
Texto
Com a publicação de Antes do Baile Verde (1970), Lygia Fagundes Telles (1923) a autora consolida sua trajetória no gênero conto e na literatura.
Como observa professor Paulo Rónai (1907-1992)1, chama a atenção para a unidade da coletânea. Dela, destaca-se a representação de um mundo e uma sociedade constituídos, diz Rónai, pelo “flagrante implacável” de “personagens [...] roídos pela ânsia de viver, mas paralisados pelos remorsos de seu passado e de seu presente”2. Tal interpretação confirma-se pela análise dos contos de introdução e fechamento do volume. Em “Os Objetos”, a atenção aos costumes individuais, impressos em objetos de uso privado, permite a um marido expressar a frustração e o tédio de um casamento arruinado mediante a sugestiva e trágica recuperação de uma adaga.“Para que serve uma adaga fora do peito?”, diz ele, em reação à frieza do relacionamento. A investigação discreta da vida que os objetos escondem remonta, por sua vez, ao mote de “Olho de Vidro”. Nele, a autora alinha-se à tradição do conto moderno para sugerir a identidade entre o contista e certo detetive particular, cuja prática investigativa da vida alheia choca-se com as próprias escolhas e frustrações. Entre ambos, Lygia apresenta uma galeria de tipos de uma classe média urbana e provinciana, acanhada e autoritária, cujos conflitos verificam-se nas tensões entre indivíduos. É o caso, por exemplo da traição dos sonhos nos casais afastados pela vida.
De Antes do Baile Verde destaca-se, ainda, a relação entre a técnica e a sensibilidade da contista para o contraponto entre dramas individuais e determinações sociais. Tomem-se por exemplo as perspectivas femininas de “Apenas um Saxofone”, do conjunto de 1969, e “Os Mortos”, pertencente ao conjunto de 1949. Pautados por depoimentos de mulheres (de Luisiana, no primeiro, e de uma burguesa anônima, no segundo) que revisitam o passado, ambos apresentam consciências em crise a expor seus entraves num ambiente delimitado. Em “Os Mortos”, o depoimento da mulher de família abastada que vê o próprio casamento chegar ao fim implica a interiorização de um modelo social. Esse modelo é a base de seus caprichos e arbitrariedades, centrais para que se subentenda a catástrofe a que se reduz a vida do ex-marido. Já em “Apenas um Saxofone”, a explosão da subjetividade massacrada pelo tédio só se apresenta em plenitude quando vista da perspectiva das contradições da matéria social. Tudo se dá em torno dos ressentimentos da ex-prostituta Luisiana. Sua riqueza deriva de um casamento vantajoso e de um modo de produção (o latifundiário) sem o qual não se apreendem as sutilezas da futilidade e a falta de lastro espiritual. As aulas de filosofia de salão, a compra de obras de arte falsas para a exibição em reuniões, a vaidade risível da pintura de um retrato a óleo e a ostentação desproporcional das posses. A narrativa sublinha o aspecto grotesco de uma ambição que, por fim, revela-se constitutiva da protagonista. O mais importante, Luisiana ama um saxofonista apaixonado somente por sua arte.
Nesse, como em outros contos da coletânea, os elementos materiais e a construção de protagonistas ultrapassam os limites da ação e da caracterização inerentes ao gênero conto. Situações e acontecimentos subentendem uma teia mais ampla de circunstâncias e tipos humanos. Numa narrativa complexa que foge à experiência concreta e perspectiva individual, Lygia flerta o tempo todo com os limites que separam o conto e o romance.
A análise da vida por trás dos objetos cotidianos depende da contiguidade simbólica entre as peças. Destacam-se os mínimos elementos, nomes ou personagens, como a roseira de “A Janela” e “Um Chá bem Forte e Três Xícaras”; o nome Tomás, dado aos protagonistas de “A Chave” e “As Pérolas”; o céu estrelado de “A Ceia” e “Eu Era Mudo e Só”. Tais elementos reaparecem e articulam-se na unidade dos contos com novos significados. O leitor atento percebe, também, a manifestação aleatória da cor verde (central no conto que dá nome à coletânea) em detalhes de caracterização em quase todas as peças. Isso faz justiça ao interesse do homem em “Os Objetos”: assim como os objetos, os símbolos nada trazem de intrínseco. Definem-se pela especificidade das tensões em jogo, conforme o uso que se faz deles. Nas tensões, encontram-se vidas examinadas em sua variedade circunstancial, sem perder de vista as costuras do tecido social.
Notas
1. TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile verde. 3. ed., Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1975. (Coleção Sagarana.)
2. TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile verde. 3. ed., Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1975. (Coleção Sagarana.)
Fontes de pesquisa 5
- CADERNOS de Literatura Brasileira: Lygia Fagundes Telles. v.5. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998.
- LUCENA, Suênio Campos de. Esquecimento e lembrança em Lygia Fagundes Telles. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
- SILVA, Vera Maria Tietzmann. A metamorfose nos contos de Lygia Fagundes Telles. Rio de Janeiro: Presença Edições, 1985.
- TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile verde. 3. ed., Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1975. (Coleção Sagarana.).
- TELLES, Lygia Fagundes. Histórias escolhidas. São Paulo: Boa Leitura Editora S/A, 1961.
Como citar
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ANTES do Baile Verde.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra71054/antes-do-baile-verde. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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