Lúcia McCartney, uma garota de programa
Texto
Segundo longa-metragem de David Neves (1938-1994), baseado em “Lúcia McCartney” e “O Caso de F.A.”, dois contos de Rubem Fonseca (1925), também autor do roteiro. O cineasta procura um diálogo próximo com o público. Declara: “gostaria de fazer um tipo de cinema até mais convencional”, dentro de “um esforço sobre-humano para compreender as coisas. E para ser normal”1.
Os dois contos têm como tema a prostituição. No primeiro, uma garota de programa apaixona-se por seu cliente; no segundo, um cliente fica obcecado por uma garota que ele encontra em um bordel de onde deseja retirá-la. David Neves prolonga um conto no outro, tendo como cenário a zona sul do Rio de Janeiro.
Lúcia McCartney [Adriana Prieto (1950-1975)] é uma jovem órfã, que lê Fernando Pessoa e histórias em quadrinhos, ouve The Beatles – inspiração para o apelido –, e que não gosta de promiscuidade. Tem amigos de praia, boate e diversão, já dormiu com dois deles, mas ninguém sabe seu ofício. Em um de seus programas, conhece José Roberto [Albino Pinheiro (1933-1999)], empresário de São Paulo por quem se apaixona. Ele desaparece, e ela, enquanto aguarda o retorno de seus telefonemas, lamenta o abandono, visita os tios em São Paulo, muda-se de apartamento com uma amiga e procura notícias do ex-cliente.
A amiga, realista e direta, sabe que Lúcia está equivocada. José Roberto é um homem que busca possessão física e espiritual das amantes por apreciar fazê-las sofrer. Por meio de uma carta, descreve o encontro com outra mulher e, tempos depois, deixa um cheque de despedida com a amiga de Lúcia.
McCartney, vitimada pelo jogo do amor, sente ciúmes, saudades, solidão e culpa pela vida que leva. De frente para a câmera, enquanto se despe, enumera os motivos que conduzem uma mulher à prostituição e as justificativas que a mantém no ofício: falta de dinheiro, gosto pela coisa, desemprego, um filho para criar, salário alto, um emprego como qualquer outro.
Uma grande seta branca em meio à tela preta demarca a passagem da primeira para a segunda história. Nesta, Orlandino [Nelson Dantas (1927-2006)] procura os serviços profissionais de Paulo Mendes [Paulo Villaça (1933-1992)], advogado e detetive. Orlandino conhece uma garota em um bordel mas não consegue reencontrá-la, porque fica sabendo que ela é coagida pela cafetina Gisele [Odete Lara (1929-2015)] e seus capangas. Deseja retirá-la do local promíscuo antes que ela se corrompa e dar-lhe proteção como pai ou amante.
Enquanto arrola os dados e procura extrair de um informante detalhes do bordel, Paulo Mendes investiga o caso no próprio local e com as garotas agenciadas por Gisele. Com a ajuda de um lutador de artes marciais, arma um ataque contra a casa e resgata a jovem. Paulo percebe a vigarice da garota e adverte Orlandino, mas este continua a desejá-la.
A justaposição das duas histórias é feita por meio de uma rápida aparição de Paulo Mendes na primeira e pelo reaparecimento de Lúcia na segunda. Ela é a jovem resgatada por Paulo Mendes. Na cena final, o reencontro entre Lúcia e a amiga explicita o elo temático.
O prolongamento de uma história na outra é complexo. Existe unidade de estilo, obtida com recursos já incorporados no cinema moderno: alternância entre colorido (sépia ou preto e branco) em uma mesma cena; utilização do negativo e não das imagens reveladas; congelamento de fotogramas, escurecimentos, uso da câmera lenta, substituição de alguns diálogos por legendas escritas, cortes bruscos da música entre uma cena e outra.
David Neves procura uma afinidade com a literatura de Rubem Fonseca, que mistura formas de narração em uma mesma trama, e investiga o próprio cinema. Estabelece uma comparação entre o cinema, o amor desejado e a prostituição, baseado em uma frase de Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977), citada na abertura do filme: “as necessidades que o cinema e a prostituição satisfazem são as mesmas (...) Dizer que os espectadores entram no cinema como vão, ou iriam, ao bordel, não deixa de ser chocante (...) Tenho a impressão de que meus propósitos ficarão mais claros e menos chocantes se, invertendo agora a maneira de ver as coisas, eu lembrar que com muita frequência os homens vão ao bordel como vão ao cinema”.
Espectador e protagonista experimentam as mesmas reações amorosas: o tempo de espera, a solidão diante do espetáculo, a vontade de compreender o que o outro diz, a fantasia que aproxima a plateia da tela, as alterações de sentimentos durante o transcorrer da projeção.
O sentimento do cliente pela prostituta desprotegida é a descrição de um imaginário masculino e a prova de que a necessidade de suprir o amor passa pela criação de uma fantasia, que o cinema e os encontros de prostituição fornecem. Filme e bordel são brincadeira, fantasia, amor, gozo e fruição, em intervalo de tempo determinado.
A crítica da época não se deixa encantar pelo filme. Luiz Carlos Merten (1945), por exemplo, privilegia a representação naturalista do tema e reclama que “David estica as cenas, cenas que têm por objetivo a captação do natural e do espontâneo dos personagens no seu cotidiano, além dos limites da paciência do espectador”2. Já Alberto Shatovsky considera que o cineasta “quis estreitar a distância entre o cinema intimista e o espetáculo aberto à receptividade popular”, tendo como resultado uma “desarmonia [que], ainda assim, não chega a desfigurar sua intenção crítica”3.
Outros preferem comparar a adaptação com o original literário. Sérgio Augusto (1942) afirma que “David respeitou o mais que pode o texto original mas seu filme quase nunca sugere que a obra que lhe serviu de inspiração é uma pequena obra-prima literária”4. Geraldo Magalhães, por sua vez, elogia o distanciamento entre as duas linguagens: “David Neves teve campo aberto para recriar a seu modo a história e ganhou pontos (...) É o que está mais que provado: a literatura e o cinema têm caminhos divergentes”5.
A censura restringe as cenas de sexo, transformando os 84 minutos de projeção em 65 minutos. A cópia disponível possui 71 minutos, indicando que alguns dos cortes impostos são recuperados.
Nada se sabe sobre a aceitação do filme no mercado, embora matérias jornalísticas procurem agregá-lo ao sucesso do livro. É uma produção econômica, com poucas locações.
Notas
1. HORTA, João Carlos. David Neves e Rubem Fonseca falam de Lúcia Mc Cartney. Filme Cultura, Rio de Janeiro, ano IV, n. 18, p. 27, jan./ fev. 1971.
2. MERTEN, Luiz Carlos. Um sonho de cinema. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 2004. p. 86.
3. SHATOVSKY, Alberto. As mulheres em tela. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 03 dez. 1971.
4 Citado em Guia de Filmes, Rio de Janeiro, ano V, n. 35, p. 199, set./ out. 1971.
5 Citado em Guia de Filmes, Rio de Janeiro, ano V, n. 35, p. 199, set./ out. 1971.
Fontes de pesquisa 6
- AUGUSTO, Sérgio. Lúcia McCartney. O Pasquim, Rio de Janeiro, 23 nov. 1971. In: Guia de Filmes, Rio de Janeiro, ano V, n. 35, set.-out. 1971, p. 199.
- CINEMATECA Brasileira. Filmografia brasileira: Lúcia Mc Cartney. Disponível em: < http://www.cinemateca.gov.br/filmografia/ >. Acesso em: 09 mar. 2011.
- HORTA, João Carlos. David Neves e Rubem Fonseca falam de Lúcia McCartney. Filme Cultura, Rio de Janeiro, ano IV, n.18, p.24-27, jan./ fev. 1971.
- MAGALHÃES, Geraldo. Lúcia McCartney. O Estado de Minas, Belo Horizonte, 2 set. 1971. In: Guia de Filmes, Rio de Janeiro, ano V, n. 35, p. 199, set./ out. 1971.
- MERTEN, Luiz Carlos. Um sonho de cinema. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 2004. [Publicado originalmente em Folha da Manhã, 26 jun. 1970].
- SHATOVSKY, Alberto. As mulheres em tela. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 03 dez. 1971.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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LÚCIA McCartney, uma garota de programa.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra70164/lucia-mccartney-uma-garota-de-programa. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7