Estudando o Samba
Texto
Estudando o Samba é o quinto disco do músico Tom Zé (1936), lançado pela Continental no início de 1976. Chamado para executar “A Felicidade” [Tom Jobim (1927-1994) e Vinicius de Moraes (1913-1980)], em um programa de televisão, o compositor elabora uma harmonia revertida para o compasso de seis por oito, que possibilita outras articulações silábicas e fraseados imprevistos. O efeito estranho leva-o a fazer um disco inteiro de sambas, pesquisando novas possibilidades para além das melodias e harmonias usuais.
O título escolhido (em lugar de Entortando o Samba, como cogita a princípio), insinua uma pesquisa contínua, capaz de desenraizar a tradição. Na capa, concebida pelo artista plástico Walmir Teixeira (1943), aparecem arames farpados entrelaçados a uma corda, sobrepostos a um fundo branco. A escolha corrobora a desconstrução de clichês: ao mesmo tempo em que alude ao aprisionamento da forma, nota-se que esta “cerca” está ligeiramente frouxa, como se os limites fossem ultrapassados.
Tom Zé elabora, de forma coesa e bem acabada, o método composicional iniciado no trabalho anterior, Todos os Olhos (1973), explorando a desmusicalização dos instrumentos, a forma da “descanção”, o uso dos ostinatos1, a pesquisa por outras sonoridades - sons inauditos e ruidosos -, a criação de instrumentos e a radicalização de uma poética interjetiva2. Dessa forma, privilegia o ritmo e transforma instrumentos harmônicos, como o cavaquinho e o violão, em percussivos.
Em Estudando o Samba, a primeira faixa, “Mã”, mergulha o ouvinte numa polifonia circundada pelo acorde central. Nela, palavras com sons parecidos multiplicam-se. Duas linhas melódicas, a mais grave, na viola eletrificada, e a mais aguda, no cavaquinho, soam sobre o compasso de dois por quatro do samba. A frase do cavaquinho, inspirada no timbre agudo do instrumentista Waldir Azevedo (1923-1980), desempenha dissonâncias e contrapontos que priorizam as células rítmicas. A seção de metais, arranjada por José Briamonte (1931), conta com Hermeto Pascoal (1936), e os arranjos vocais são feitos por membros do grupo CTA-102, representantes do rock psicodélico paulistano. A segunda faixa do álbum, versão de “A Felicidade”, promove deslocamentos nos tempos fortes do samba, por meio da forma de cantar ou de tocar os instrumentos.
Única faixa instrumental do disco, “Toc” leva ao extremo a proposta de Tom Zé. Em sua estrutura entrecruzam-se a música concreta do compositor francês Pierre Schaeffer (1910-1995) - gritos, ruídos de máquinas, rádio de pilha -, ataques do naipe de metais minimalistas e repetitivos e percussões econômicas. A sequência rítmica é dada pelo cavaquinho durante toda a música de maneira cíclica. Os parâmetros de composição agrupam-se em uma massa sonora, que não possui introdução ou encerramento.
O samba de breque “Tô”, parceria com Elton Medeiros (1930), é uma espécie de síntese do álbum, cujos versos contraditórios propõem a quebra de dualismos (“Tô te explicando / Pra te confundir…”). Em “Vai (Menina Amanhã de Manhã)”, parceria com Antônio Perna Fróes (1944), o andamento é dado pela levada do violão, com percussão discreta. A voz é utilizada mais como instrumento musical do que para a comunicação verbal. Em “Ui! (Você Inventa)” imprime-se aos instrumentos harmônicos o desenho rítmico da percussão do samba.
Primeira faixa do lado B, “Dói” evoca a sonoridade dos sambas de roda baianos. Na repetição, metais e coral crescem em volume, destacando-se a voz feminina que canta na deixa para as estrofes, repetindo como um cavaquinho “Dói, dói, dói...”. “Mãe (Mãe solteira)”, parceria com Elton Medeiros, traz uma letra de cunho social, que descreve a personagem pela justaposição de signos psicológicos e materiais (lágrima, silêncio, ponto de tricô), sugerindo que ela se prostitui para sustentar o filho.
“Hein?” estrutura-se sobre um tema comum no samba, a briga de casal, numa situação em que a mulher é a provedora, e o homem abusa de sua confiança. A primeira parte, composta pelo violonista Vicente Barreto (1950), é calcada no contratempo. O arranjo instrumental confere ritmo inovador ao gênero, situado entre samba e baião. “Só (Solidão)” ameniza o tom melancólico pelo humor, ao anunciar: “O telefone chamou, foi engano”. O compositor inclui um compasso ternário no final da última estrofe, quando canta a palavra “descompasso”, materializando o “engano” no arranjo.
“Se” é a única música do disco que contém pandeiro, instrumento do samba por definição. A temática do amor não correspondido envereda para o humor, e os versos recorrem ao coloquial. A linha de baixo serve mais de comentário da canção do que de acompanhamento harmônico.
Última faixa do LP, “Índice” enumera títulos monossilábicos das canções anteriores, aproximando-se à poesia concreta. Realizada durante as gravações, possui sonoridade cíclica, dada pela ausência de refrão ou subdivisão. Ao contrário de um índice programático, o encerramento do disco é uma faixa quase improvisada.
Devido ao caráter experimental, Estudando o Samba leva Tom Zé ao ostracismo midiático, algo que não ocorre com as “canções de protesto”, por exemplo, que, apesar da abordagem política, ainda correspondem às sonoridades aceitas. Os procedimentos, timbres e ruídos inesperados resultam na incompreensão entre artistas e jornalistas ligados ao samba, ainda que o álbum tenha contado com a colaboração de Elton Medeiros, um dos músicos mais importantes na história do gênero. Apenas no final dos anos 1980, com a redescoberta quase acidental deste disco num sebo pelo músico e produtor David Byrne (1952), é que Tom Zé relança suas obras e inicia uma carreira internacional.
Faixas
1. “Mã” (Tom Zé)
2. “A Felicidade” (Tom Jobim, Vinicius de Moraes)
3. “Toc” (Tom Zé)
4. “Tô” (Elton Medeiros, Tom Zé)
5. “Vai (Menina Amanhã de Manhã)” (Tom Zé, Perna)
6. “Ui (Você Inventa)” (Tom Zé, Odair Cabeça de Poeta)
7. “Dói” (Tom Zé)
8. “Mãe (Mãe Solteira)” (Tom Zé, Elton Medeiros)
9. “Hein?” (Tom Zé, Vicente Barreto)
10. “Só (Solidão)” (Tom Zé)
11. “Se” (Tom Zé)
12. “Índice” (Tom Zé, José Briamonte, Heraldo do Monte)
Notas:
1. Frase melódica que se repete, semelhante a um riff de guitarra ou uma frase de contrabaixo.
2. refere-se ao uso dos monossílabos, particularmente das interjeições, mais em função do som que do sentido.
Fontes de pesquisa 5
- BOMFIM, Leonardo Corrêa. Os tons de Zé: transformações paradigmáticas na obra de Tom Zé (1967-1976). Dissertação (Mestrado em Música) - Instituto de Artes, Unesp, São Paulo, 2014.
- OLIVEIRA, Bernardo. Estudando o samba. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014. (Coleção O Livro do Disco).
- TATIT, Luiz. O século da canção. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.
- TOM ZÉ. Entrevista concedida a Charles Gavin no programa O Som do Vinil, 2008. Transcrição disponível em: < http://osomdovinil.org/estudando-o-samba/ >. Acesso em: 20 set. 2016.
- WEINSCHELBAUM, Violeta. Estação Brasil: conversas com músicos brasileiros. tradução Chico Mattoso. São Paulo, SP: 34, 2006.
Como citar
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ESTUDANDO o Samba.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra70097/estudando-o-samba. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7