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Enciclopédia Itaú Cultural
Música

Beleléu, leléu, eu

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 23.11.2023
1980
Primeiro disco de Itamar Assumpção (1949-2003) e Banda Isca de Polícia, o LP Beleléu, Leléu, Eu (1981), marca a estreia do selo Lira Paulistana, ligado ao teatro de mesmo nome, em São Paulo. O local abriga a chamada Vanguarda Paulistana, geração de compositores e bandas que inovam a música popular brasileira, tais como Premeditando o Breque, Eli...

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Análise

Primeiro disco de Itamar Assumpção (1949-2003) e Banda Isca de Polícia, o LP Beleléu, Leléu, Eu (1981), marca a estreia do selo Lira Paulistana, ligado ao teatro de mesmo nome, em São Paulo. O local abriga a chamada Vanguarda Paulistana, geração de compositores e bandas que inovam a música popular brasileira, tais como Premeditando o Breque, Eliete Negreiros (1951), Rumo, Língua de Trapo e o próprio Itamar Assumpção.

O disco reflete a efervescência musical da capital paulista e atesta a falta de ousadia das gravadoras da época, que não se interessam pelo projeto. Gravado num estúdio de 16 canais, o álbum é custeado pela economias de dois funcionários do teatro. Os músicos participam da empresa como cooperativados, recebendo parte do lucro da venda. As duas mil cópias, comercializadas no próprio Lira Paulistana, são numeradas, atendendo a uma velha demanda da classe musical. Iniciam uma produção que não é independente (custeada pelos artistas), mas alternativa (bancada pelo selo fonográfico, em cooperação com os músicos)1.

O objetivo é produzir um trabalho comercializável e autoral. Nota-se a preocupação de integrar cada detalhe do disco, da capa à ficha técnica. A começar pela unidade temática, pois as canções giram em torno da vida do anti-herói Beleléu, um marginal “inconformado com sua situação”. Seu verdadeiro nome, Benedito, faz referência ao santo cultuado pela comunidade negra no Brasil e é uma ironia com a noção de artista maldito (Nego Dito). Igualmente irônico é o título do “perigosíssimo bando” que acompanha o protagonista: Isca de Polícia.

Beleléu pode ser interpretado como releitura do malandro clássico do samba e alter ego do compositor, que em 1973 é marginalizado por conta de sua cor. A polícia prede-o quando se prepara para ir de Londrina a Arapongas. Carrega um gravador emprestado de um amigo, mas como não pode provar que não o havia roubado, termina na delegacia, onde fica preso cinco dias. “Eu estava esperando o ônibus com uma bolsa, ingênuo, coitadinho, santinho... Só que pretinho, né? São Beneditinho ali”2.

Essa vivência inspira uma produção inovadora, crítica, bem-humorada, fundindo sonoridades do rock à força verbal do rap, ao suingue do reggae e ao ritmo da música negra. A canção “Nego Dito”, o Beleléu, vale-se da provocação para denunciar a marginalização do personagem/compositor:

Se chamá polícia

Eu viro uma onça

Eu quero matar

A boca espuma de ódio

Pra provar pra quem quiser ver e comprovar.

As demais canções do disco, todas de Itamar, trazem outras facetas do cotidiano de um marginal. Nelas, o compositor fala de suas neuroses:

Fico louco, faço pelo sinal

Me atiro ao chão de ponta-cabeça

Me chamam de maluco etc. e tal

Espero que você não me esqueça3

de seus sonhos (“Você nem vai ter o prêmio de consolação/ quando eu pintar, trazendo a taça de tetracampeão/ e uma foto no jornal”4), do amor

Baby, não se assuste

Hoje o tempo é de terror

Nosso céu ainda chora

Nos telhados da cidade

E nossa amizade a tudo resiste5

e da adversidade da vida na cidade grande:

Girei esse tempo todo

Batendo de porta em porta

À procura de um abrigo

Um apego no horizonte

Tentando de cabo a rabo

São Paulo de ponta a ponta

Na batalha de sossego

Alívio ou mesmo a morte6.

Nas canções de letra singela, a subversão se dá na linguagem musical, como na balada escrita em parceria com Older Brigo, “Fon Fin Fan Fin Fun”, marcada por constantes modulações7, ou em “Aranha”, de Arrigo Barnabé (1951), Luis Rondó e Neusa Pinheiro Freitas, com melodia atonal.

Todas as faixas, trazem um canto quase falado. A base harmônica e a melodia das músicas nascem do impulso rítmico das frases. Muitas vezes, a sonoridade das palavras funciona como sonoplastia das cenas (“Apagou um no Paraná pá, pá, pá”8). Outro elemento central são os arranjos. Criados a quatro mãos pelo compositor com Arrigo Barnabé, parceiro de muitos anos, servem para “rechear” as canções e estruturar a composição, por meio de coros percussivos, falados ou harmônicos, que dialogam com o solista. As linhas de baixo, compostas por Itamar, são importantes nesse sentido. Elas induzem o ouvinte a uma escuta horizontal, polifônica, o que distancia os arranjos de meras melodias acompanhadas.

Além de inovações poéticas e musicais, o álbum caracteriza-se pela integração das linguagens visual, musical e verbal, que reforçam a unidade de sentido. O logo na capa é ilustrado por um fragmento do rosto do compositor sobreposto três vezes. A fragmentação repete-se na contracapa, uma composição quadriculada com fotos dos membros da banda e do técnico de gravação. Aparece, ainda, no título do álbum, em que o nome “Beleléu” é fragmentado e repetido até revelar o pronome “eu”. A identificação autor-personagem é reforçada pela imagem do encarte: o título de eleitor de Itamar Assumpção (símbolo da cidadania formal) sob uma navalha (associada à malandragem violenta das ruas): “que black navalha é você, Beleléu?”, pergunta a companheira do anti-herói em uma das faixas9.

Outra inovação é a ficha técnica em forma de vinheta, na penúltima faixa:

Eis aqui, em primeira mão, as verdadeiras identidades desse perigosíssimo bando: Paulo Barnabé (bateria e percussão), Rondó (guitarra e violão), Gordo (vocais), Eliana (vocais), Mari (vocais, voz feminina dos solos), Turcão (vocais), Luís (teclados), Jean (guitarra em Baby e Nego Dito), Kiko (contrabaixo em Nego Dito) e Pamps (contrabaixo em Baby).

Ao se apresentar, Itamar emenda o refrão da última música do disco, “Nego Dito”: “E o meu nome é/ Benedito João dos Santos Silva Beleléu/ Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé”.

Sucesso de crítica, o disco rende a Itamar Assumpção o prêmio Apca de revelação masculina em 1981. Também atinge o grande público com a faixa “Fico louco”, trilha da novela Os adolescentes, da TV Bandeirantes. Relançado em LP pelo selo Baratos Afins e em CD pela Atração Fonográfica, o álbum é incluído pela Revista Rolling Stone entre os 100 maiores discos de música brasileira, em 200710.

Notas

1 “Lira, uma gravadora para os novos”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 jan. 1981, p. 35.

2 Entrevista concedida por Itamar Assumpção a Robinson Borba, em 1993, apud. SILVA, Rita de Cassia da Cruz. Singular e plural: os vários “eus” de Beleléu. Uma análise da performance como linguagem nos primeiros discos de Itamar Assumpção. Dissertação (Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. p. 73.

3 “Fico Louco", faixa 4.

4 “Luzia”, faixa 2.

5 “Baby”, faixa 8.

6 “Embalos”, faixa 9.

7 Passagem de uma tonalidade a outra.

8 “Nego Dito”, faixa 1.

9 Luzia, faixa 2.

10 Rolling Stone,  n. 13, out. de 2007.

Fontes de pesquisa 5

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  • BASTOS, Maria Clara. Processos de composição e expressão na obra de Itamar Assumpção. Dissertação (Mestrado em Processos de Criação Musical) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
  • FOLHA de S. Paulo. Lira, uma gravadora para os novos. Folha de S.Paulo, São Paulo, 14 jan.1981. p. 35
  • O ESTADO de S. Paulo. No LP de Itamar, humor e inovação. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 fev. 1981. p. 14
  • ROLLING Stone. Os 100 maiores discos da música brasileira. Rolling Stone, São Paulo, n. 13, out. 2007.
  • SILVA, Rita de Cassia da Cruz. Singular e plural: os vários “eus” de Beleléu. Uma análise da performance como linguagem nos primeiros discos de Itamar Assumpção. Dissertação (Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

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