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Enciclopédia Itaú Cultural
Literatura

A Lua Vem da Ásia

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 21.12.2023
1956
Análise

Texto

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Análise
Publicado em 1956, o romance A Lua Vem da Ásia revela a mistura de absurdo e lirismo que marca a prosa madura do escritor mineiro Campos de Carvalho (1916-1998).

“Aos dezesseis anos matei meu professor de lógica”: assim começa o “diário de guerra e paz”[1] de um homem que se diz Adílson, Heitor, Ruy Barbo e, por fim, Astrogildo, dedicado ao relato de seus dias. Vive num hotel de luxo, que talvez seja um campo de concentração ou um hospício, e de lá foge. Dele, não se sabe ao certo a idade ou a classe social. Vestígios textuais fazem crer que possui alguns recursos e que tem 50 anos. Apesar da falta de referências, o protagonista é acompanhado em sua loucura contra conflitos internacionais, revoluções e contrarrevoluções. Um mundo de alta política, em que a identidade de seus companheiros (de férias ou internação) remonta a impérios e à ciência. Seus contatos envolvem diplomacia e conspiração, e suas reivindicações podem ser encaminhadas ao presidente da República ou traduzidas em cartas de desagravo ao Times. Um mundo em que “a crueldade e a estupidez do universo” (citando a epígrafe de Gabriel Brunet, que abre o volume) podem ser ridicularizadas ao fazer da vida deste Astrogildo “um poema de incoerência e absurdo”.

O romance está dividido em duas partes. Na primeira, intitulada Vida Sexual dos Perus, Astrogildo expõe, em capítulos de numeração caótica, sua vida de interno na instituição. Vigora uma perspectiva fantasiosa do ambiente. Primeiramente, fala dele como se fosse um estranho hotel internacional, do qual é hóspede. Seguem-se palavras sobre o contato com os demais convivas e a estrutura de poder do local, com a separação arbitrária entre homens e mulheres e um enterro decorrente de um caso de suicídio. Uma visita da mãe leva-o a fazer as vezes de “filho” para uma mulher que teria perdido os seus nas guerras em que o mundo está envolvido e que cercam o “hotel”. A lucidez ganha seu contraponto e obstáculo na relação com um irmão imaginário, sepulto dentro de si. É necessário um “novo” primeiro capítulo para que o hospital passe de hotel a campo de concentração. Nele, Astrogildo declara-se prisioneiro de guerra, acuado diante do destino. Brada sua liberdade interior contra a minoria ditatorial do campo e apresenta as muitas memórias de sua vida de viajante.

A fuga do hospital inicia a segunda parte do livro, Cosmogonia, que se contrapõe à primeira, desde a organização linear dos capítulos até a tematização de uma vida em liberdade propriamente dita. Aqui, as reminiscências dão lugar à ação num universo de pensões baratas, botequins e prostitutas, rendendo-lhe uma prisão por desacato ao pudor e, por fim – fuga da fuga –, uma viagem ao exterior. Nesta viagem, o romantismo aventureiro das memórias da primeira parte volta à cena para consumir-se, em definitivo, no suicídio acompanhado do necrológio de si mesmo.

Campos de Carvalho é conhecido como cronista de O Pasquim, entre 1968 e 1978, e apreciado por grandes nomes de sua geração. Sua obra é sucinta e deixa de escrever ficção sem chegar a uma década de atividade literária (1956-1964). Segundo Bráulio Tavares (1950), estabelece-se em A Lua Vem da Ásia (“novela absurdista”) o estilo que o autor consagra em volumes subsequentes[2]. Entre as características desse estilo destacam-se: “Uma trama errática”, guiada pela perspectiva de um “louco” e seu propósito de enfrentar a arbitrariedade burguesa e “imagens inesperadas e poderosas”, por meio de uma linguagem constituída como instrumento de guerrilha anárquica. Além disso, “numerosos trocadilhos e piadas de humor negro”, com os quais Astrogildo enfrenta a realidade, e uma “atitude sarcástica quanto ao destino”. O melhor testemunho desse destino é “Funereamente seu”, que fecha o romance com desesperança e esgotamento.  

Na mesma linha e explorando o problema da loucura, Carlos Felipe Moisés (1942) coloca “o desrespeito à verossimilhança euclidiana” e “a rejeição do sensato e do bem-comportado” como resultados de um “desejo palpável de violência, mas de violência edificante”. Por meio dela, o  narrador-autor desmonta “os ajustes convencionais da ordem para instalar o caos gerador dum mundo menos sufocante [...] onde a expansão do ‘eu’, por intermédio de múltiplas e livres associações, não se [confunde] com a loucura” [grifo nosso] na qual se incluem os comportamentos e discursos contra a normalidade.

Do ponto de vista do cânone literário brasileiro, pautado pelo romance realista de debate social, a recusa à conciliação que caracteriza Astrogildo e a prosa de A Lua Vem da Ásia remonta a alguns dos principais exemplares da literatura nacional. É o caso de Macunaíma (1928) de Mario de Andrade (1893-1945) e Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) de Machado de Assis (1839-1908). A partir de sua reavaliação, em meados da década de 1990, a obra prenuncia novos caminhos na produção contemporânea.

Notas
[1] CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008. p. 85.
[2] Bráulio Tavares elenca Campos de Carvalho em seu Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog, extensa bibliografia do fantástico e trabalho pioneiro no Brasil. Apud BATELLA, Juva. Quem tem medo de Campos de Carvalho? Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. p.49.

Fontes de pesquisa 5

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  • ARANTES, Geraldo Noel. Campos de Carvalho: literatura e deslugar na ficção brasileira do século XX. Tese de doutoramento. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2010.
  • BATELLA, Juva. Quem tem medo de Campos de Carvalho? Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.
  • CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008.
  • GONZAGA, João Felipe. Um resgate da obra de Campos de Carvalho: o surrealismo e a produção do cômico. Dissertação de mestrado. Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2007.
  • GONÇALVES, Douglas Ferreira. Da Ásia à Bulgária: um caminho impossível. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2008.

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