Zero
Texto
Análise
Ignácio de Loyola Brandão (1936) estreia na literatura com o livro de contos Depois do Sol (1965). Zero (1975) é o segundo romance do escritor, publicado após Bebel que a Cidade Comeu (1968).
Em Bebel, inicia-se a experimentação formal, o diálogo com a realidade histórica e social do Brasil dos anos 1970 e a criação do arcabouço documental de Zero. A obra representa a consolidação estilística do autor, resultado do desdobramento da linguagem esboçada anteriormente.
Pode-se dizer que o lugar ocupado por Zero na literatura de resistência à repressão política, tendência predominante na ficção brasileira da época, deve-se à proximidade desse método de criação com o ambiente político. Na época, Brandão trabalha como secretário gráfico do jornal Última Hora, submetido à censura interna desde a eclosão do golpe de Estado que inaugura o regime militar. No decorrer dos anos, recolhe as notícias censuradas no jornal, parte da matéria-prima de Zero. Surge, assim, o germe da notoriedade e inicia-se o difícil caminho de atingir o leitor brasileiro.
Recusado por diversas editoras em 1974, Zero tem a primeira edição na Itália, viabilizada na Universidade de Roma pela professora de literaturas portuguesa e brasileira Luciana Stegagno Picchio (1920-2008). A obra é encaminhada a ela pelo dramaturgo Jorge Andrade (1922-1984), amigo de Brandão. No ano seguinte ao lançamento da tradução italiana, realizada pelo escritor Antonio Tabucchi (1943-2012), o romance é publicado no Brasil e, imediatamente, proibido pela censura do governo militar e liberado apenas em 1979.
Como em Bebel, o retrato de época em Zero é elaborado com experimentações que pulverizam o ponto de vista narrativo e exploram o espaço gráfico da página. Sai de cena a lente realista, evidente, por exemplo, na identificação do espaço ficcional de Bebel a São Paulo e Brasil. Em Zero, a fragmentação narrativa é radicalizada. Constroem-se um método e um espaço narrativos de caráter alegórico, que mostram um embate com a repressão da ditadura militar.
Como se lê na abertura do livro, o enredo se passa “num país da América Latíndia”, nação correspondente à realidade brasileira, porém, distorcida por uma atmosfera catastrófica. A ação também é ensandecida, num “show de horrores” que perpassa todo o livro. No cerne dessa metrópole apocalíptica, encontra-se o anti-herói José, protagonista de várias peripécias. Inicialmente, trabalha como exterminador "de ratos em um cinema poeira". Em seguida, envolve-se em estranhos rituais e frequenta a zona suburbana, animada por um misto de boemia e espetáculos de bizarrices. Mantém um casamento pervertido e violento com Rosa, para, depois, rechaçar a vida burguesa, tornando-se ladrão e assassino inescrupuloso. Finalmente, após juntar-se a um grupo de guerrilheiros, acaba aprisionado em desterro ambíguo, palco de um transe místico que lhe fornece uma revelação transcendente sobre a América. Para o crítico alemão Jörg Drews (1938-2009), “José é apenas uma partícula dentro do caos político e social” construído nas centenas de breves capítulos que compõem o livro como um “mosaico de retalhos narrativos”.
Com isso, explicita-se o flerte com a montagem cinematográfica e o registro múltiplo e veloz dos meios jornalísticos. Isso se traduz nos jogos com formatos e recursos textuais: do uso transgressor da pontuação à inclusão de notícias, desenhos, gráficos e quadros com anedotas e estatísticas; da exploração caricata de onomatopeias a divisões inusitadas do corpo do texto em blocos e à utilização de notas de rodapé em meio à narrativa ficcional. Tudo isso, enfim, como notam os críticos Heloisa Buarque de Hollanda (1939) e Marcos Augusto Gonçalves (1956), a serviço de uma “grande alegoria do estado violentado e desagregado” do país, “produzida pelo clima de opressão que acompanha, em todos os momentos, a narrativa de Loyola”.
Embora proibido no Brasil, Zero recebe, em julho de 1976, o prêmio de melhor ficção, da Fundação Cultural do Distrito Federal. O impacto mais significativo, além do sucesso de vendas das duas primeiras edições (em torno de 6 mil exemplares), é o interesse demonstrado no exterior. Além de Luciana Picchio, a professora Erilde Melillo Reali publica, em 1976, a versão brasileira de seu estudo O Duplo Signo de Zero. Na mesma direção vão comentários mais breves, como o elogioso artigo publicado por Jörg Drews no periódico alemão Suddeutsche Zeitung, em 1980, no lançamento da tradução alemã. Seguem-se, ainda, versões espanhola (1976), norte-americana (1983), coreana (1990) e húngara (1990).
Zero é um marco na ficção brasileira dos anos 1970 desviante. Como retrato social e político de crítica à repressão, vai ao encontro da tendência do romance brasileiro do momento. Diversos comentadores chamam a atenção para a síntese peculiar realizada por Brandão entre o documental e a voz fragmentada, que pode remeter o leitor ao estilhaçamento narrativo de romances como Marco Zero (1943/1945) e Serafim Ponte Grande (1933), do escritor Oswald de Andrade (1890-1954). É o caso, por exemplo, da crítica Flora Sussekind (1955), que aproxima o romance a Quatro-Olhos (1976), de Renato Pompeu (1941-2014), sugerindo que ambos "funcionam como facas afiadas que fraturam o modelo jornalístico da ficção dos anos setenta". Para Sussekind, a contribuição do livro está no fato de que, "enquanto a ideologia naturalista procura, graças a um retrato sem rachaduras, recobrir o que lhe serve de modelo das descontinuidades e dos cortes, Zero se deixa invadir pela dúvida, pela estranheza, pela fratura, desviando-se da falácia de construir uma imagem univocal do país”.
Fontes de pesquisa 7
- ALMEIDA, Dolores R. Simões. A propósito do romance Zero, de Ignácio de Loyola Brandão. Travessia. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina, n.1, p. 89-94, 1980.
- BIVONA, Kristal. Tortured text: an analysis of the absents pages of Ignácio de Loyola Brandão's Zero. In: Mester, Los Angeles, v. 42, n. 1, 2013.
- BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Cadernos de literatura brasileira: Ignácio de Loyola Brandão. São Paulo, Instituto Moreira Sales, n. 11, jun. 2001.
- LIMA, Marcos Hidemi; FLEURY, Andreia. América Latindia De(Zero)icizada. In: Travessias: pesquisas em educação, cultura, linguagem e arte, Cascavel: Universidade Estadual do Oeste do Paraná, v. 2, n. 2. , 2008.
- REIMÃO, Sandra. Dois livros censurados: Feliz Ano Novo e Zero. In: Comunicação & Sociedade, São Paulo: Universidade Metodista de São Paulo, v. 30, n. 50, 2008.
- SALLES, Cecilia Almeida. Uma criação em processo: Ignácio de Loyola Brandão e Não verás país nenhum. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1990.
- SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
Como citar
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ZERO.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra69164/zero. Acesso em: 05 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7