Cinzas do Purgatório
Texto
Análise
A Cinza do Purgatório, primeiro livro brasileiro de Otto Maria Carpeaux (1900-1978), reúne ensaios inicialmente publicados no jornal Correio da Manhã, entre 1941 e 1942. Os textos tratam de obras da literatura europeia com ponto de vista amplo, consideradas em termos de estilo e em relação a seus contextos históricos.
O livro contém 28 ensaios divididos em três seções: “Profecias”, “Interpretações” e “Julgamentos”. Os títulos indicam dois aspectos relevantes: o humanismo cristão e a realidade sociopolítica do momento. A aproximação com o vocabulário religioso aponta para o humanismo cristão que guia o ponto de vista do autor, manifesto na escolha dos temas e na compreensão de mundo. Em um ensaio como “A Lição de Uma Santa”, a respeito de Santa Teresa D’Ávila, afirma: “A verdadeira história passa despercebida, tranquilamente, no centro da alma humana. Ela finalmente é a mais forte. É a nossa fé”. Já em “Medievalismo” procura mostrar como a Idade Média é um período de “liberdade de pensamento”, no qual a obra de São Tomás de Aquino (1225-1274) é o maior exemplo.
Em segundo lugar, a nomenclatura profética indica a imbricação da obra analisada e a realidade sociopolítica: ao refletir sobre a literatura, o crítico pondera sobre seu próprio conhecimento, de modo a decifrar, no objeto estudado, o tempo presente. Em “A fronteira”, sobre o poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891), escreve: “O poeta diz o que os outros não sabem dizer; mas recusa comunicar-se numa língua que seja a nossa língua. [...] E é muito bom que assim seja: pois a poesia, não sendo deste mundo, é o julgamento do mundo; se o mundo compreendesse a poesia, estaria já julgado”. Neste mesmo ensaio, refere-se a Manuel Bandeira (1886-1968), afirmando que, com ele, a poesia brasileira consegue “o seu lugar na literatura universal”.
Algumas linhas gerais de seu método crítico são comentadas em “Ensaio de Análise em Profundidade”. Sobre a necessidade de considerar as relações entre obra literária e história, superando um ponto de vista limitado aos elementos da criação, afirma: “toda crítica de princípios puramente literários baseia-se num aristocratismo, consciente ou inconsciente, porque o valor literário, assim definido, fica ao alcance só de poucos”. A verdadeira tarefa consiste em explicar o “conteúdo profundo” que se fixa no símbolo literário e supera as intenções do autor.
No texto em questão, discute-se o símbolo da “alma perdida” em A História Maravilhosa de Pedro Schlemihl (1814), narrativa do poeta francês Adelbert de Chamisso (1781-1838), escrita em alemão. A imagem do homem que perde a alma relaciona-se à biografia do autor, que vive exilado, mas a ultrapassa, dando forma a uma “experiência universalmente humana”. Essa experiência é vista no contexto histórico: “Hoje, para dizer a verdade, toda a humanidade está no exílio”, diz Carpeaux, “havendo perdido ou estando ameaçada de perder a sombra exterior”. O ensaísta acena, assim, para um sentido contemporâneo da “alma perdida”, relacionado à ascensão do totalitarismo e à Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Embora procure uma postura crítica não aristocrática, o autor revela uma visão tradicionalista da cultura. Em “A Ideia da Universidade e as Ideias das Classes”, argumenta que o regime escolar da modernidade, voltado para a formação de quadros profissionais, desvaloriza a formação intelectual. O ensino moderna trai a vocação humanística da universidade, que é a de formar homens capazes de refletir sobre seu tempo, porque seu conhecimento não é utilitário. “Todo o problema espiritual dos nossos dias é, pois, [...] um problema pedagógico”, sentencia. Não por acaso, Carpeaux defende um tradicionalismo “ativo”, que assegure a transmissão contínua das grandes obras do passado, com a consciência crítica do presente.
O “impacto renovador” desses ensaios, que mostram “hábitos mentais e pontos de vista diferentes dos que reinavam aqui”, é destacado por Antonio Candido (1918-2017), que menciona ainda o seu caráter informativo, pois apresenta obras pouco conhecidas no país naquela altura. “Franz Kafka e o mundo invisível” é o primeiro escrito no Brasil sobre o autor tcheco. Nomes como o do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) também são divulgados em textos de A Cinza do Purgatório.
Alfredo Bosi (1936), em tom de depoimento pessoal, ilustra a importância de Carpeaux para críticos formados nas décadas de 1940 e 1950: “Posso dizer que, durante anos a fio, não bebi de outra fonte em matéria de crítica literária”. Sobre o mestre, afirma tratar-se do “primeiro grande leitor dialético” no Brasil, pelo modo como considera as relações entre literatura e história.
Essas qualidades antecipam as características centrais de História da Literatura Ocidental, sua obra máxima, com estrutura igualmente dialética e de vocação universalista. Para cada período literário o autor apresenta obras que lhe façam contraponto aos aspectos dominantes. Seu estudo parte dos gregos, passa pelos primeiros séculos do catolicismo e chega ao século XX, abarcando as literaturas europeias e americanas.
Embora tenha sido responsável por apresentar diversos autores da literatura estrangeira, Otto Maria Carpeaux não é visto como um importador. Produz, no Brasil, uma crítica literária de fina sensibilidade e oferece contribuição brasileira aos estudos literários.
Fontes de pesquisa 4
- BOSI, Alfredo. Carpeaux e a dignidade das letras. Céu, Inferno. São Paulo: Ed. 34, 2003.
- BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 36. ed. rev. e aum. São Paulo: Cultrix, [1999]. 528 p.
- BOSI, Alfredo. Relendo Carpeaux. Estudos Avançados, São Paulo, vol.27, n.78, p. 279-290, 2013. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142013000200018&script=sci_arttext" >. Acesso em: 23 out. 2015.
- CANDIDO, Antonio. Dialética apaixonada. In: ______. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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CINZAS do Purgatório.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra69122/cinzas-do-purgatorio. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7