Libertinagem
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Libertinagem, 1930
Manuel Bandeira
Brasiliana Itaú/Acervo Banco Itaú
Texto
Primeiro livro da maturidade literária de Manuel Bandeira (1886-1968), Libertinagem (1930) inaugura um traço de toda sua produção posterior: a expansão subjetiva do eu lírico. Até então expressa em primeira pessoa, sempre às voltas com sua interioridade, essa característica é aqui reduzida ao essencial. O poeta adere à realidade exterior, e elementos prosaicos e cotidianos entram no poema.
Se em Ritmo Dissoluto (1924), já se nota a presença de temas do folclore brasileiro e da experiência objetiva do sujeito, em Libertinagem cristaliza-se a nova poesia. A ruptura com as tendências simbolistas até então predominantes é definitiva e adota-se uma estética moderna. As formas fixas cedem lugar ao verso livre, e o mistério da poesia não é buscado nas emoções do eu, mas em coisas pobres e transitórias. A linguagem é simples e procura aproximar-se da língua portuguesa falada no Brasil.
Há um deslocamento do que pode ou não ser considerado matéria-prima, que leva à mescla estilística entre emoção elevada e linguagem simples. Isso é resultado, conforme confessa o poeta no ensaio autobiográfico Itinerário de Pasárgada (1954), do contato com o cotidiano do Rio de Janeiro na década de 1920. Vivendo no morro do Curvelo, bairro de Santa Teresa, com vista para o dia a dia humilde de trabalhadores pobres e acesso à Lapa da boemia carioca, Bandeira passa a incorporar, em suas composições, a vida das ruas. O poema “Na Boca” é um entre muitos exemplos:
E nos três dias de carnaval éter de lança-perfume
Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
O ano passado ele parava diante das mulheres
[bonitas
E gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
– Na boca! Na boca!
Os traços centrais do livro – a novidade estilística representada pelo uso do verso livre, da linguagem simples e o aproveitamento da realidade brasileira como matéria poética – revelam a afinidade de Bandeira com o movimento modernista. Embora o poeta não participe como militante do grupo liderado por Mário de Andrade (1893-1945), Libertinagem é considerado um de seus expoentes. “Poética”, que integra o volume, pode ser tomado como programa dessa nova estética: “Estou farto do lirismo bem comedido / Do lirismo bem comportado […] / Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”.
No volume estão, entre 38 composições, algumas das mais conhecidas peças do poeta. “Pneumotórax”, que retrata o diagnóstico de doença pulmonar apresentado pelo médico ao eu lírico, remetendo a dados biográficos, é exemplar quanto ao tratamento dos impulsos subjetivos. A estrutura narrativa na primeira estrofe apresenta o sofrimento físico e existencial do eu; na segunda, convoca a presença médica. A terceira estância, composta de um diálogo de três falas, revela o diagnóstico fatal. Fica a cargo do leitor depreender o conteúdo trágico da fala final do médico, que sugere não haver cura para a enfermidade: “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”.
“Vou-Me Embora pra Pasárgada” é revelador de como o poeta retoma um tema caro aos românticos: o desejo de evasão de uma realidade causadora de sofrimentos. Ele o faz de modo essencialmente moderno, conforme se lê no trecho:
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático.
A figuração do desejo escapista leva Mário de Andrade, em resenha sobre Libertinagem, a saudar a composição como “obra-prima poética dum estado de espírito bastante comum nos poetas brasileiros”. Na opinião do crítico, o modo de formular o desejo – “Vou-me embora” – é tipicamente brasileiro, extraído da tradição popular, permitindo a expressão do desejo como questão coletiva, e não apenas individual.
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), contrapõe-se a Mário de Andrade, em texto publicado em 1940. Para ele, o poema tem um sentido “profundamente pessoal” e deve ser lido sob a contradição que se instala na obra de Bandeira entre “mundo visível” e “vida íntima”. É a tensão entre essas duas forças que caracteriza o trabalho do poeta.
Aproveitando a formulação de Buarque de Holanda – “evasão para o mundo” – e o entendimento geral de Mário de Andrade, o crítico Davi Arrigucci Jr. (1943) define a expressão do sujeito em Bandeira como um “objetivismo lírico”. Esforçando-se para permanecer oculto, o “eu” constrói o poema de modo que a emoção poética e o sentido do sublime surjam com surpresa para o leitor. Nesse sentido, o trabalho do poeta, a partir de Libertinagem, é desentranhar a poesia do cotidiano. Em “Poema Tirado de uma Notícia de Jornal”, isso implica reproduzir cruamente a narrativa jornalística no poema, propondo uma reflexão sobre o caráter trágico do destino humano com base no deslocamento do meio – do jornal para o poema – em que é narrada a trajetória de João Gostoso. A composição apresenta-se como um achado estético nas histórias cotidianas, com força simbólica intensificada pela aparente pobreza dos recursos expressivos adotados.
Segundo Arrigucci, a adesão ao prosaísmo, sintetizada no emprego do verso livre, é a principal contribuição de Bandeira. Seu “estilo humilde”, capaz de atingir a máxima complexidade e a emoção mais alta, configura-se plenamente no livro “desabusado e irônico” que é Libertinagem.
Fontes de pesquisa 10
- ANDRADE, Mário de. A poesia em 1930. In: _______. Aspectos da literatura brasileira. 5.ed. São Paulo: Martins, 1974.
- ARRIGUCCI JR., Davi. A beleza humilde e áspera. In: _______. O cacto e as ruínas. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2000. p. 7-89.
- ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
- ARRIGUCCI JR., Davi.O humilde cotidiano de Manuel Bandeira. In: _______. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 9 -27.
- BANDEIRA, Manuel. Libertinagem – estrela da manhã. Edição crítica coordenada por Giulia Lanciani. Madri; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Lima; Guatemala; San José; Santiago: ALLCA, XX, 1998.
- BRAYNER, Sônia (Org.). Manuel Bandeira: fortuna crítica 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
- CANDIDO, Antonio; SOUZA, Gilda. Introdução. In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. p. lx-lxxvii.
- HOLANDA, Sérgio Buarque de. Trajetória de uma poesia. In: BRAYNER, Sônia (Org.). Manuel Bandeira: fortuna crítica 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p. 142-197.
- LIMA, Luiz Costa. Realismo e temporalidade em Manuel Bandeira. In: LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
- MERQUIOR, José Guilherme. O modernismo e três de seus poetas. In: MERQUIOR, José Guilherme. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 97-134.
Como citar
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LIBERTINAGEM.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra6837/libertinagem. Acesso em: 05 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7