Dom Casmurro
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Dom Casmurro, 1899
Machado de Assis
Texto
Dom Casmurro (1899) é o sétimo romance publicado por Machado de Assis (1839-1908) e o terceiro de sua fase madura, inaugurada com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e é um importante legado para a prosa realista brasileira, contribuindo não apenas para a literatura nacional, torna-se um relato atemporal para interessantes análises sobre a psicologia humana e os costumes da sociedade.
O romance encerra as memórias de Bento Santiago, narrador responsável pela história que se expõe. O apelido Dom Casmurro é dado a ele por um jovem poeta, num percurso de trem, que se ofende com o desinteresse de Bento pela leitura de seus poemas. Solitário e vivendo a quadra final da vida, Dom Casmurro decide escrever para “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”1. Para tanto, retoma a relação com Capitolina Pádua, conhecida como Capitu, filha de um funcionário público que ganha na loteria e, assim, passa a frequentar a sociedade dos Santiago. A família de Bento é chefiada pelo pai, Pedro de Albuquerque, um latifundiário, deputado e senhor de escravos. Sua morte prematura leva a viúva, D. Maria da Glória, a liquidar parcialmente seus bens e a mudar-se com dependentes, escravos e agregados do campo para a capital.
Dada a moldura social, acompanha-se o autor pelos principais momentos dessa relação, de que dependem todos os passos de sua vida. No início, o amor furtivo da adolescência, pelo qual Bento decide abandonar a batina a que fora prometido por sua mãe. Em seguida, a curta vida de seminarista, cuja a troca pelo estudo das leis, depende de delicadas manipulações e negociações entre os membros da família. Há também o casamento com Capitu, resultado feliz da comédia da juventude. Durante o relato da vida conjugal, depreende-se a suspeita da traição ou não de Capitu com o melhor amigo de Bentinho, o também ex-seminarista Escobar. Da suposta traição, teria nascido o filho do casal, Ezequiel. A prosa do memorialista revela-se uma tentativa de reconstituição dos tempos idos, eivada de ressentimento contra aquela a quem dedicara seus melhores sentimentos e que lhe teria correspondido (assim pensa Bento) com a infâmia do adultério.
A simplicidade do enredo é contraposta pela intrincada construção narrativa, baseada nos torneios de memória do protagonista. O desenvolvimento do drama em si – com a morte de Escobar e a partida de Capitu e do filho – é menor se comparado ao longo desfilar de lembranças sobre momentos da infância e da adolescência. O objetivo de Bento parece ser buscar nesse passado a suposta adúltera em latência. Daquele tempo, ressaltam-se desejos e fragilidades sentimentais dos cônjuges e o discreto julgamento social de Capitu, sobretudo da parte do agregado da casa, José Dias. A vivacidade encantadora da garota seria, da perspectiva desse conflito, o disfarce à ambição, ao cálculo e à astúcia de alguém que, desde a adolescência, reconhece a superioridade dos Santiago e pretende ascender socialmente. O vínculo entre o relacionamento amoroso e a condição social pesa, por sua vez, sobre o próprio narrador e a consistência de seu relato em face da fragilidade dos argumentos da acusação. Entre eles, a alegada semelhança entre o finado Escobar (afogado no mar) e Ezequiel. Restam apenas suspeitas derivadas da arbitrariedade da suspeita. O ciúme por meio do qual Bento alinha a própria narrativa à tragédia de Otelo, do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616), é permeado de vitimização. Com ele, procura a compaixão de “suas leitoras”.
Embora não tenha sido recebido com a efusividade de Memórias Póstumas pelos leitores, Dom Casmurro é o livro de maior recepção crítica da obra de Machado e o mais rodeado de polêmicas. Em pouco mais de 100 anos de história, Dom Casmurro rende defensores ferrenhos de Bentinho – caso do crítico Alfredo Pujol (1917), para quem “Bento Santiago, alma cândida e boa, submissa e confiante, feita para o sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua deliciosa vizinha, Capitolina – Capitu [...] traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela [...] instintiva e talvez inconsciente.”2 –, e críticos não menos empenhados em seu comportamento. O divisor de águas da crítica é o estudo da norte-americana Helen Caldwell, O Otelo Brasileiro de Machado de Assis (1960). Identificando a profundidade da referência machadiana a Shakespeare, Helen é a primeira a redefinir a leitura tradicional dos papéis do romance, que dão por certas as funções da vítima e da culpada. Trazendo a insígnia do vilão shakespeariano Iago no próprio sobrenome (Santiago), Bento acumula as funções do herói e do antagonista trágicos diante de uma nova Desdêmona, incapaz de lutar contra a cegueira e a perfídia do marido.
Na esteira do trabalho pioneiro de Caldwell, pode-se destacar a leitura de Silviano Santiago (1936), que vê em Bento a possibilidade do desmascaramento de “certos hábitos de raciocínio, certos mecanismos de pensamento” presentes na cultura bacharelesca brasileira. E a de Roberto Schwarz (1938), que inverte o próprio vetor da traição e argumenta: “A junção de vontades confusas, em parte inconfessáveis (o ciúme desatinado, os apetites sexuais diversos), com a autoridade patriarcal”, da qual Bento se vê ungido por ideologia de classe, é “conjugação que descarta, ou trai, o juramento de confiança e igualdade que o moço bem-nascido fizera à vizinha pobre”3. Sendo assim, Capitu representa o pensamento esclarecido e arejado a ser esmagado pela violência inerente ao patriarcalismo brasileiro.
Sem permitir uma resposta definitiva, o questionamento da fidelidade de Capitu e o modo como Bento (o personagem-narrador) a conduz parecem renovar-se ao sabor da própria história social brasileira. Dom Casmurro, além de se consolidar como um monumento do romance nacional, é um estudo imprescindível da sociedade e da psicologia humanas.
Notas
1. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Apresentação de Paulo Franchetti; notas e comentários de Leila Guenther. Cotia: Ateliê Editorial, 2008. p. 94.
2. PUJOL, Alfredo apud PROENÇA, Paulo Sérgio de. Machado de Assis escritor negro. Literafro. 23 mar. 2021. Resenha. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ensaio/1355-machado-de-assis-afrodescendente-eduardo-de-assis-duarte. Acesso em: 4 mar. 2022.
3. SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 33.
Fontes de pesquisa 6
- ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Apresentação de Paulo Franchetti; notas e comentários de Leila Guenther. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.
- CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Cotia: Ateliê Editorial, 2002.
- PEREIRA, Lucia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.
- PROENÇA, Paulo Sérgio de. Machado de Assis escritor negro. Literafro - O portal da literatura afro-brasileira. Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte 23 mar. 2021. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ensaio/1355-machado-de-assis-afrodescendente-eduardo-de-assis-duarte. Acesso em: 4 mar. 2022.
- SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2000.
- SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Como citar
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DOM Casmurro.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67619/dom-casmurro. Acesso em: 02 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7