Senhora: perfil de mulher (volume 1)
Texto
Análise
Na obra de José de Alencar (1829-1877), Senhora (1875) figura entre os romances urbanos que focalizam a sociedade fluminense do Segundo Reinado (1840-1889). A burguesia carioca da época é retratada com repulsa ou deleite. Com repulsa quando desvela as ações por conveniência ou interesse nas relações sociais. Com deleite quando o viés aristocrático ocupa a cena, e os bailes na corte, o requinte dos palacetes e as vestimentas são descritos com plasticidade.
Senhora traz o subtítulo Perfil de Mulher. A narrativa é construída em torno da protagonista Aurélia Camargo – mentora do plano de vingança que responde pelo enredo. Segundo Antonio Candido (1918), em Senhora e Lucíola (1862) encontram-se os únicos momentos na obra alencariana “em que o homem e a mulher se defrontam num plano de igualdade”. Em outras palavras, a estatura psicológica de cada um não está marcada por um desnível entre os dois, ou ainda, não falta a um deles mais densidade humana ou amadurecimento interior.
A relação entre Aurélia e Fernando Seixas é pautada pela lógica mercantil, que se reflete na divisão da narrativa: “O Preço”, “Quitação”, “Posse” e “Resgate”. São etapas de uma transação comercial ou acerto de contas que transcorre segundo a vontade de Aurélia, cujo desejo de se casar com Seixas, frustrado em um primeiro momento, é realizado depois de uma reviravolta no enredo.
Aurélia é fruto da união de Emília Lemos e Pedro de Sousa Camargo. Filho de fazendeiro, Pedro morre sem revelar ao pai que havia se casado. Tinha medo de que a família desaprovasse a relação por causa da origem pobre da mulher. Ao descobrir a certidão de casamento entre os pertences do filho, Lourenço de Sousa Camargo procura a nora e a neta para lhes restituir o tempo de desamparo que viveram. Para isso, registra em testamento a transferência de todo seu patrimônio para as duas. Emília morre antes de receber a herança. Com a morte do avô, Aurélia passa de moça pobre, sem perspectiva, a dama da alta sociedade, com recursos para se vingar de Seixas. Ele, entre a conveniência e a felicidade, escolhe a primeira opção, trocando o casamento com Aurélia, então sem dinheiro, por outra união mais rendosa.
No plano de vingança de Aurélia, chama a atenção o fato de ela se encarregar da negociação do dote, procedimento associado ao universo masculino. No século XIX, não cabe a uma moça tomar a frente de uma “transação” que deve ser conduzida pelo pai ou – na falta deste – por outra figura masculina. José de Alencar surpreende ao promover essa mudança na ordem das coisas. Não por acaso, o crítico Heron de Alencar (1921-1972) afirma que Senhora “é dos romances mais bem construídos do autor”, apresentando “uma boa crítica à educação tradicional, ao casamento por conveniência”.
O autor explora o caráter de negociação por trás da união amorosa e discute a complexidade das ações de Aurélia e Seixas, substituindo a dicotomia entre o bem e o mal pelo processo dialético no comportamento humano.
No quadro da literatura brasileira, o lugar de José de Alencar não é pequeno. Para Roberto Schwarz (1938), sua obra “é uma das minas da literatura brasileira”. Machado de Assis (1839-1908), por exemplo, sabe explorar essa mina (e outras mais) e elevar a ficção nacional a um nível surpreendente, sobretudo quando se pensa nas adversidades de uma nação que dá os primeiros passos. A contribuição de Alencar para o desenvolvimento de uma literatura que expressa os sentimentos mais fundos do país repercute em gerações de leitores e influi na elaboração de novas visões do Brasil. Pode-se afirmar que o movimento modernista, preocupado em redescobrir o país e revigorar a cena literária, bebe nessa fonte. O legado do escritor está presente na produção literária dos modernistas de primeira e segunda hora.
Fontes de pesquisa 8
- ALENCAR, Heron de. “José de Alencar e a ficção romântica”. In: COUTINHO, Afrânio (Dir.). A Literatura no Brasil. . Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana, 1955. v. 1, tom. 2.
- ALENCAR, José de. Senhora: perfil de mulher. Intr. Antônio Soares Amora. São Paulo: Cultrix, 1968.
- ALENCAR, José. Alfarrabios: cronicas dos tempos coloniaes. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1873. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, São Paulo, [s.d.] Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4636. Acesso em: 02 de out. 2020
- ARARIPE JR., Tristão de Alencar. José de Alencar. In: COUTINHO, Afrânio (Dir.). Obra Crítica de Araripe Jr. v. I (1868-1887). Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; Casa de Rui Barbosa, 1958. ( Textos da Língua Portuguesa Moderna, n. 3.).
- BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 36. ed. rev. e aum. São Paulo: Cultrix, [1999]. 528 p.
- CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (1750-1836). 8.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993. 2v.
- SCHWARZ, Roberto. A importação do romance e suas contradições em Alencar. In: SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor, as Batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2000.
- VERÍSSIMO, José. A segunda geração romântica. Os prosadores. In: VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 5. ed. Pref. Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. ( Documentos Brasileiros, n. 74.).
Como citar
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SENHORA: perfil de mulher (volume 1).
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67481/senhora-perfil-de-mulher-volume-1. Acesso em: 05 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7