Poesias
Texto
Destacado como um dos maiores poetas brasileiros, Gregório de Matos (1636-1696) não deixa um livro com suas composições. O conjunto de sua obra resulta no registro escrito de recolhas orais feitas nos séculos XVII e XVIII na Bahia, objeto de incertezas e polêmicas. Apesar dos problemas relacionados à autoria, os poemas são invariavelmente valorizados pela crítica – ainda que não haja consenso quanto às razões para tal grandeza.
Os primeiros estudos sobre o autor, marcados pela união entre obra e biografia, tornam os poemas uma espécie de crônica de seu tempo, isto é, como representação realista e fiel das instituições e dos comportamentos na Bahia seiscentista. Além disso, depreendem dos versos a personalidade do autor: a exemplo de Manuel Pereira Rabelo, elogiam Gregório de Matos como poeta, mas o condenam como homem infame. Nessa mesma esteira, críticos como Sílvio Romero (1851-1914) destacam o inconformismo e a capacidade crítica do poeta. Em outra linha, há aqueles que, a partir da poesia satírica e da incorporação de vocábulos tupi, afirmam o nativismo e o anticolonialismo dos versos, e os que, contrariamente, ressaltam a fidelidade de Matos ao seu estilo e tempo.
Contemporâneo de Padre Antônio Vieira (1608 – 1697), o poeta baiano, embora leigo, revela-se imerso na mesma cultura teológica. Escreveu poesia religiosa, na qual expressa uma visão de mundo essencialmente barroca, como a angústia com a morte, o desconcerto do mundo, a figuração mais familiar de Deus, aos quais dá forma particular, em geral dilacerada. Nesse sentido, sua lírica religiosa tem a marca de uma “divisão interna”, como aponta o crítico literário Alfredo Bosi (1936). Entre a “via mística” e a “consciência moralista”, em geral esta predomina, havendo até mesmo casos em que o sujeito negocia o perdão divino:
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
Também o erotismo revela-se cindido. De um lado, há a lírica amorosa, de tom elevado e que se compraz do sofrimento amoroso:
Cresce o desejo; falta o sofrimento;
Sofrendo morro; morro desejando:
Por uma e outra parte estou penando,
Sem poder dar alívio ao meu tormento.
De outro, a poesia erótico-irônica, com a visão licenciosa do sexo e do corpo feminino, em geral negro ou mestiço, e que se torna objeto de desprezo e luxúria:
Descarto-me da tronga, que me chupa,
Corro por um conchego todo o mapa,
O ar da feia me arrebata a capa,
O gadanho da limpa até a garupa.
Boa parte de sua obra revela o intertexto com autores que também se dedicaram à sátira social, como os espanhóis Gôngora (1561 - 1627) e Quevedo (1580 - 1645) e os portugueses Sá de Miranda (1481 - 1558) e Camões (1524 - 1580). Muitos poemas são adaptações ou traduções – e o que parte da crítica considera plágio outra as vê como característica da poética do tempo.
Conforme argumenta o crítico literário Antonio Candido (1918), Gregório de Matos pertence a um momento em que a literatura brasileira não se havia estabelecido como um sistema: sem público leitor e sem relação com autores conterrâneos. Na Colônia há apenas manifestações literárias, de que Vieira e Matos são a maior expressão. O argumento motivou uma das maiores polêmicas na crítica brasileira, inaugurada pela publicação de O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: o Caso Gregório de Matos, em que o poeta Haroldo de Campos (1929 - 2003) acusa Candido de adotar uma perspectiva histórico-ideológica, responsável por gerar “relutância [...] na abordagem do Barroco brasileiro”. Campos, defendendo uma leitura “sincrônica” da literatura brasileira, reivindica que a obra de Gregório de Matos seja valorizada estilisticamente. O crítico deve prescindir do critério histórico, para considerar a contribuição que os textos do passado podem trazer para a produção contemporânea. Desse esforço Gregório de Matos emerge como “um de nossos poetas mais criativos”, inclusive pela “miscigenação idiomática de caldeamento tropical”. Esta leitura é similar à de Augusto de Campos e Oswald de Andrade, que destacam a inversão de valores na poesia de Matos e a síntese de influências europeias e temas nacionais.
Para o crítico literário João Adolfo Hansen (1942), ressaltar a originalidade de Gregório de Matos é incorrer em erro histórico, já que não existiam, tais como se concebem hoje, as noções de autoria e inovação no século XVII. Os procedimentos técnicos não se devem a invenções pessoais; são comuns ao tempo, de modo que o estilo é historicamente determinado, como uma convenção. Se a originalidade não é possível, tampouco o é a transgressão. Assim, Hansen argumenta que a sátira, sendo um gênero discursivo com regras intrínsecas, tem como referente o próprio discurso, e não a realidade. Não se trata, por isso, de “oposição aos poderes constituídos”, mas da “defesa da ordem” associada à posição hierárquica, já que a “desqualificação moral” tem como fim mostrar que “o satirizado nunca está à altura” de ocupar tal posição.
Já Alfredo Bosi, que estuda a poesia satírica de Gregório de Matos segundo o “conhecimento histórico do ponto de vista do escritor”, argumenta que a sátira responde a mudanças históricas do momento – nomeadamente a crise do açúcar – cujo resultado seria a perda de prestígio do setor social a que pertence o autor. Assim, no soneto À cidade de Bahia, trata-se de “acusar as forças que os arrancaram, a ele e à Bahia, da grata abundância em que ambos viviam outrora”:
Triste Bahia! ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.
O poema exemplificaria o caráter conservador da sátira de Gregório de Matos.
Mesmo quando não utiliza o critério da originalidade ou da transgressão, a crítica valoriza como superiores as composições. Caso notório é o do poema estruturado em torno de aliteração em r (“Neste mundo é mais rico o que mais rapa”): semelhante a outros da época, como demonstra Hansen, aproveita como nenhum o recurso do verso final. Recolhendo as sílabas finais, o arremate explora as relações entre elementos sonoros e semânticos de modo ainda surpreendente:
Para a tropa do trapo vazo a tripa;
E mais não digo; que a Musa topa
Em apa, em epa, em ipa, em opa, em upa.
A força atemporal dessa poesia garante a permanência do que o professor José Miguel Wisnik (1948) resume como “um saldo de problemas e possibilidades que ultrapassam em muito os limites dos demais poetas coloniais e que o fazem, seguramente, um dos poetas mais instigantes da nossa literatura”.
Fontes de pesquisa 13
- BOSI, Alfredo. Do antigo estado à máquina mercante. In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
- BOSI, Alfredo. Do antigo estado à máquina mercante. In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
- CAMPOS, Haroldo de. O Seqüestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: o caso Gregório de Matos. Bahia: Fundação Casa de Jorge Amado, 1989.
- CAMPOS, Haroldo de. Por uma poética sincrônica. In: A arte no horizonte do provável. 4. ed. São Paulo: Perspectiva. 1977.
- CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. 12. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2012.
- CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 12. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.
- DIMAS, Antônio (Org.). Gregório de Matos. São Paulo: Abril Educação, 1981.
- HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
- MARTINS, Wilson. O caso Gregório de Matos. In: ______. História da inteligência brasileira. Ponta Grosa: UEPG, 2010.
- MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira, I. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
- PÓLVORA, Hélio. Para conhecer melhor Gregório de Matos. Rio de Janeiro: Bloch, 1974.
- SPINA, Segismundo. A poesia de Gregório de Matos. São Paulo: Edusp, 1995.
- WISNIK, José Miguel. Prefácio. In: MATOS, Gregório de. Poemas Escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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POESIAS.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67384/poesias. Acesso em: 07 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7