O Presente
Texto
Lançado em 2006 pelo selo Água Forte, com patrocínio da Petrobras, O Presente faz um recorte na obra de Willy Corrêa de Oliveira (1938), com ênfase no período de retomada da atividade de compositor, incluindo também algumas obras anteriores a esta fase. Com encarte de 64 páginas de textos do compositor sobre as peças gravadas, e desenhos de Enio Squeff, o álbum consiste em dois discos: um de obras pianísticas, e o segundo com canções. A direção artística é assinada pelos compositores Thiago Cury (1973), Marcus Siqueira e Maurício de Bonis, ex-alunos do homenageado.
Um dos divulgadores no Brasil, na década de 1960, das correntes de vanguarda europeias, o compositor pernambucano Willy Corrêa de Oliveira repudia, por razões ideológicas, a fase experimental e formalista de sua produção “burguesa”, para cultivar um idioma mais simples, e “compreensível para as massas”. Passa a colaborar com sindicatos, Comunidades Eclesiais de Base e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
Depois de uma década de afastamento, promove, em 1988, seu retorno à composição erudita. Agora “direcionada para o foro íntimo, sua produção conta com dezenas de canções, peças para piano e música de câmara”1.
O primeiro disco começa com o experiente pianista Caio Pagano (1940) interpretando obras da década de 1970: "3 Instantes" (1977) e 2 "Prelúdios" (1971-1975). Com uma carreira internacional expressiva dentro do repertório pianístico tradicional, Pagano também está associado à música de Willy, da qual faz diversas primeiras audições, como o Concerto para Piano e Orquestra (a ele dedicado) e as obras que toca neste CD.
Os 3 Instantes têm origem em obra anterior, La Flamme d'une Chandelle, e estão em forma ABA – o “Instante 1” é o A, o “Instante 2” o B, e o “Instante 3”, novamente como A. Já os Prelúdios dialogam com obras-chave da história da música. O “Prelúdio 1” trabalha com material da Mazurka Op. 63 n. 3, de Frederic Chopin (1810-1849); o “Prelúdio 2” baseia-se em acordes da ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner (1813-1883), em Scherzo n. 1, de Chopin, no “acorde místico” de Aleksandr Scriábin (1872-1915), nos bailados A Sagração da Primavera e Petruchka, de Igor Stravinsky (1882-1971), e no Op. 19 n. 6, de Arnold Schönberg (1874-1951).
Em seguida, o pianista Fernando Tomimura (1975) executa Velhos Hinos Cantados de Novo (1991), coletânea de 12 peças que evocam os hinos que Willy canta e ouve na infância, no culto protestante da Igreja da Capunga, no Recife.
Noturno em torno de uma Deusa Nua (2002), peça para piano solo que vem a seguir, é executada por Bruno Monteiro. Inclui um guia para a seção central da peça, com instruções como “beije-lhe um ombro, com intensidade” e “agora é preparar a volta do Samba”. A breve The storms of the stars in the sky will turn to quiet, tocada ao piano por Isabel Kanji, toma como título o verso de uma poesia da russa Marina Tsvetáieva (1892-1941).
O CD conclui com sete valsas para piano solo, tocadas por Lílian Tonella fora da ordem cronológica de composição. Trata-se de miniaturas dotadas de títulos evocativos, muitas vezes dialogando com o a literatura e as artes plásticas: “Valsa no fim do ano” (2002), “Anna A. – para piano, uma valsa lendo ‘Hamlet’” (1990) – a Anna A. do título é a poeta russa Anna Akhmátova (1889-1966) –,” Giz Negro e Gouache: Egon Schiele” (1993), “Valse – desde um quadro de Orlando Marcucci” (1993), “Waltz – ouvida através da neblina” (1993), “Rua do Padre Inglês, n. 154” [Estampa Recifense] (1996) e “Valsa da Eterna Primavera” (1995).
O segundo disco abre-se com o ciclo de peças para piano solo Miserere, escrito entre 1999 e 2005, cujas partes têm duração brevíssima (entre oito segundos e 1'27''). Um dos participantes é o compositor e pianista Maurício de Bonis, que estudou essa obra em sua dissertação de mestrado, publicada em livro.
Em seu texto, De Bonis analisa a relação do Miserere com o ciclo homônimo de gravuras do francês Georges Roualt (1871-1958) e a “superposição de citações musicais, entendida em analogia com o ideograma chinês, e o chamado teatro musical”. No Miserere “circulam músicas populares, hinos protestantes, imitações de sons de animais – memórias do compositor, comentadas na partitura”2. Além de De Bonis, atuam em Miserere o próprio Willy, Lílian Tonella e o compositor Marcus Siqueira.
No resto do disco, Maurício de Bonis, ao piano, acompanha sua mulher, a soprano Caroline de Comi, em 23 canções. Com belo timbre, desenvoltura nos agudos e trajetória importante, tanto na ópera tradicional quanto na música contemporânea “experimental”, De Comi move-se com habilidade dentro do universo estético multifacetado de Willy, articulando os textos de forma clara nos três idiomas (português, inglês e espanhol) das canções.
As obras abarcam considerável lapso de tempo: “Canção Polifônica IV”, a mais antiga, é de 1958, enquanto “Lluvia”, a mais recente, é de 2003. As escolhas refletem os gostos de Willy que, no texto de encarte do disco, define cada uma de suas canções como uma “prestação de contas” de suas leituras dos poemas. Há três canções sobre textos de seu conterrâneo João Cabral de Melo Neto (1920-1999): “Infância” (em três versões distintas, 2002/2003), “Janelas” (2002) e “O Capibaribe” (2001). Comparecem ainda traduções para o português de poetas consagrados da literatura internacional, como o romeno Paul Celan (1920-1970), o alemão Bertolt Brecht (1898-1956) e o austríaco Rainer Maria Rilke (1875-1926). O diálogo constante com a história da música por meio de citações também se faz presente, como em “Águas do Rio”, segunda canção do ciclo Cantares por Diamantina (1981), sobre poemas de Brecht vertidos por Edmundo Moniz (1911-1997), em que o acompanhamento pianístico passeia por fragmentos do ciclo de canções Dichterliebe, do compositor alemão Robert Schumann (1810-1856).
Notas
1 BONIS, Maurício Funcia de. O Miserere de Willy Corrêa de Oliveira: “aporia” e “apodíctica”. São Paulo, Annablume, 2010.
2 Idem.
Fontes de pesquisa 1
- BONIS, Maurício Funcia de. O Miserere de Willy Corrêa de Oliveira: “aporia” e “apodíctica”. São Paulo, Annablume, 2010.
Como citar
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O Presente.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67383/o-presente. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7