Onde a Terra Acaba
Texto
Histórico
Onde a Terra Acaba, de Sérgio Machado (1968), é um documentário sobre o universo cinematográfico de Mário Peixoto (1908-1992). Para se aproximar do realizador de Limite (1931), o filme se serve de diferentes materiais, estruturando-se a partir de fotografias da infância e adolescência do cineasta, diários, desenhos e trechos dos filmes concebidos por Peixoto. Também há extratos de trabalhos de outros diretores: Metrópolis (1927), de Fritz Lang (1890-1976); Braza Dormida (1928) e Argila (1940), ambos de Humberto Mauro (1897-1983); depoimentos de cineastas - Carlos Diegues (1940), Nelson Pereira dos Santos (1928), Ruy Solberg e Walter Salles (1956) -, do próprio Peixoto e de moradores do Sítio do Morcego, no Rio de Janeiro, onde ele morou durante anos.
Aos materiais citados somam-se imagens realizadas para o filme, que procuram a inspiração no cinema de Mário Peixoto, sobretudo em Limite, seu único filme concluído. Além desse trabalho, o cineasta deixa inconclusos pelo menos quatro títulos, faz poesia de cunho simbolista e se isola na natureza exuberante da costa fluminense. Onde a Terra Acaba ao mesmo tempo em que busca compreender a obra, faz a crônica de Limite, desde sua origem na imagem da capa de uma revista francesa, até a escolha dos atores e os inventos do fotógrafo Edgar Brasil (1902-1954) para atender à imaginação de Peixoto. Apesar da originalidade, Limite nunca teve uma carreira comercial, informa um letreiro. Em seguida, acompanhamos a produção do filme que dá título ao documentário. A leitura dos comentários do cineasta sobre o cotidiano das filmagens se soma às fotografias de cena e aos trechos do filme de Peixoto, protagonizado por Carmen Santos (1904-1952). A ruptura entre o diretor e a atriz interrompe as filmagens. A interrupção é a marca de todas as tentativas posteriores do cineasta. O filme de Machado se encerra com um enfoque sobre o Sítio do Morcego, lugar de refúgio de Mário Peixoto, que ganha ares de mausoléu ao destacar mais uma tentativa frustrada. O lugar é rico em história e o cineasta sonhou transformá-lo em museu. O depoimento de Ruy Solberg, que trabalhou com Peixoto em duas ocasiões, reforça a criatividade do cineasta e o excessivo rigor que tem com seu trabalho.
O que temos em Onde A Terra Acaba é a inspiração em um universo poético e a consequente ênfase de seus temas. O filme é extremamente reverente a seu objeto, o que lhe imprime uma atmosfera de melancolia e fracasso, o peso forte do tempo inexorável e os limites da ação humana. A vontade de compreender a obra de cinema de Mário Peixoto termina por reforçar os mitos em torno da figura do "gênio" e da obra de arte desconhecida. Os primeiros minutos do documentário expressam bem a busca pela imitação do estilo do realizador de Limite. Os letreiros iniciais apresentam o filme de Peixoto como um dos maiores do cinema brasileiro. Em preto e branco, nuvens passam e se transformam. Folhas de uma árvore tremulam suavemente. Uma gaivota plana. O mar. Retrato em bico de pena do jovem Mário Peixoto. Ondas. Enquanto essas imagens se sucedem, a voz de Matheus Nachtergale (1969) interpreta trechos do diário do cineasta e o rigor da dicção contribui para o aprofundamento no mundo interior do artista:
A realidade para mim não tem importância, não me modifica. A imaginação sim, substitui tudo e convence. Aliás, é só o que existe para mim. Vivo dela. Porque é verdadeiramente o que me faz vibrar. Crio e apago-a ao meu feitio, como um halo num sopro. Eu sofro de uma dor física, mas isso não impede que eu viva fora da realidade. Porque além do mais, ela é feia, barulhenta, desarmoniosa e exaustiva.
A leitura se interrompe, letreiros apresentam dados sobre o nascimento de Mário Peixoto e inicia-se a Gymnopédie n. 3, música de Erik Satie (1866-1925), tema de Limite. Fotografias do cineasta quando criança e adolescente são mostradas paralelamente a informações sobre sua estada na Inglaterra, fato que marca definitivamente o artista, como informa um letreiro. A leitura de trechos do diário é retomada com fotografias, objetos, livros, caneta, com destaque para o relógio, páginas do diário, a fotografia do pai de Mário Peixoto, trecho de Metrópolis, de Fritz Lang, os amigos chineses de Londres, ondas e navio apresentam o desejo de narrar uma biografia e expor um estilo com extremo respeito.
Um detalhe como o da caligrafia dos letreiros reforça a procura da inspiração no cinema de Mário Peixoto. A caligrafia evoca uma escrita manual, cuidada e sintética, semelhante a de um diário, como se houvesse uma sugestão de que o documentário se cria no rastro da escrita do célebre cineasta. Sem apresentar elementos externos para a constituição desse cinema, sem mencionar a obra poética de Mário Peixoto e seu lugar particular na literatura brasileira, o documentário parece atribuir toda a temática desse cinema ao mundo interior melancólico de um jovem ilustrado e sensível. Tudo deriva de uma imaginação excessivamente introspectiva.
Onde a Terra Acaba, apesar dos recursos poéticos, segue uma linha cronológica rígida, enumerando os malogros de um artista incompreendido e perseguido por seu tema. Assim, Limite, a obra original, que rompe com as convenções de linearidade, de assunto universal e eterno, é recuperada e tratada como um clássico por excelência. Os depoimentos escolhidos reforçam essa ideia. O cineasta Carlos Diegues se pergunta como foi possível a criação de uma obra de tamanha envergadura em país sem tradição cinematográfica. E pronuncia a frase de impacto: "O cinema de Limite é um cinema que vai ficar perdido no tempo como uma possibilidade que o cinema não realizou". Todos os depoimentos dos cineastas reiteram a condição de clássico do filme e/ou louvam a genialidade de seu criador.
Como Limite é uma unanimidade entre a crítica de cinema no Brasil, um documentário respeitoso sobre o filme não poderia deixar de despertar interesse. Inácio Araújo1 apesar de se deter em sua crítica mais no filme de Peixoto do que no de Machado, afirma que Onde a Terra Acaba é uma "experiência imperdível". Luiz Zanin Oricchio2 chama a atenção para a função pedagógica do filme, que "realiza um trabalho poético e presta o serviço de introduzir as novas gerações à obra-prima de Peixoto".
Na contra corrente da crítica de jornal, Felipe Bragança (1980), da revista digital Cinética, acusa com veemência a tentativa de imitação do estilo de Peixoto, enquanto Mario Sergio Conti (1954), mais contido, lamenta que "[...] o filme não escape da mitomania de Peixoto. Sérgio Machado não mostra a situação concreta do artista que biografa, mantendo-o afastado do contexto social e da discussão estética que o moldaram". Onde a Terra Acaba foi premiado no Festival BR, 25ª Mostra BR de São Paulo, Festival de Recife e no Festival de Biarritz.
Notas
1 ARAÚJO, Inácio. Onde a terra acaba tenta desvendar mistérios de Mário Peixoto. Folha de S. Paulo, 2 abr. 2001.
2 ORICCHIO, Luiz Zanin. Um clássico e dois documentários para o feriadão. O Estado de S. Paulo, 30 mai. 2002.
Mídias (1)
Fontes de pesquisa 5
- ARAÚJO, Inácio. Onde a terra acaba tenta desvendar mistérios de Mário Peixoto. Folha de S. Paulo, 2 abr. 2001.
- BRAGANÇA, Felipe. Onde a terra acaba. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/criticas/ondeaterraacabanovo.htm. Acesso em: 30 dez 2013.
- CONTI, Mário Sérgio. Documentário peca por omissão. Folha de S.Paulo, 30 mai. 2002.
- ORICCHIO, Luiz Zanin. Um clássico e dois documentários para o feriadão. O Estado de S. Paulo, 30 mai. 2002.
- TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. O terceiro olho: ensaios de cinema e vídeo (Mário Peixoto, Glauber Rocha e Júlio Bressane). São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2003.
Como citar
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ONDE a Terra Acaba.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67323/onde-a-terra-acaba. Acesso em: 07 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7