As Amorosas
Texto
Depois de Noite Vazia (1964), acirram-se as críticas contra e a favor do cineasta Walter Hugo Khouri (1929-2003): de um lado, altíssimo nível técnico-artístico, inteligência e transcendência filosófica; em outro plano, alienação pequeno-burguesa, arte pela arte ou formalismo sem conteúdo, ambas as posições tentando delimitar a sua obra, principalmente logo após o lançamento de O Corpo Ardente, seu filme seguinte (1966). Um embate ideológico e estético incidi também no campo político e financeiro em virtude do recém criado Instituto Nacional do Cinema (INC).
Com As Amorosas, Khouri demonstra o interesse de não bater de frente com nenhuma das correntes em conflito. Aos "universalistas" oferece a continuidade da temática existencialista que permeia sua obra, mas acena para os "nacionalistas" ao desenvolver um diálogo muito mais próximo com as polêmicas da época e, principalmente, articulando novos personagens que ora passam a representar as classes sociais urbanas do país: estudantes, mulheres em processo de liberação, artistas da TV, jornalistas. Conforme suas próprias palavras, ele acredita "que possa ter, do nacional, do mais próximo, uma visão mais ampla, mais profunda, através de uma perspectiva universal - universal, aqui, não no sentido de internacional, mas de eterno, essencial, metafísico talvez".1
O roteiro original de As Amorosas de alguns anos antes, propõe retratar a independência das mulheres que, sozinhas, buscam realizar-se no plano emotivo e no plano social. Ao ganhar corpo em 1966/1967, o tema das mulheres perde a prioridade inicial e passa a servir de contraponto às angústias, dilemas e conflitos de seu personagem principal, Marcelo, o primeiro com esse nome, que ainda retorna por mais oito vezes na filmografia de Khouri.
Marcelo [Paulo José(1937)] se apresenta como estudante universitário que não estuda, não freqüenta a faculdade e não participa de sua efervescência política. Também não trabalha porque não se adapta às regras que o mundo capitalista exige: competição, rotina, compromisso profissional. O mundo ao seu redor - uma São Paulo altamente urbanizada, o oprime com suas imposições e sinalizações coercitivas, diante das quais ele procura um caminho de fuga que é apenas íntimo, particular e de empreitada existencial; a obsessiva satisfação sexual, a seu ver, é o meio de atingir o absoluto que a vida cotidiana jamais lhe oferece.
Quatro mulheres são as pontes reveladoras, por meio de suas características bastante distintas, desse estar-no-mundo do personagem - motivo central da temática do filme. Uma delas, que tem uma participação bastante tangencial, é a irmã casada, cuja rasteira vida familiar com o marido e a filha serve para reiterar o fracasso da instituição matrimonial. A outra irmã, Lena [Lílian Lemmertz (1937-1986)], o sustenta financeira e afetivamente, mas a base incestuosa que provoca a aproximação mais amorosa entre os dois irmãos não ultrapassa o tabu e permanece nos limites da eterna proibição.
As duas outras mulheres caminham por vias claramente paralelas. Ana [Anecy Rocha (1942-1977)] é a estudante universitária ligada a movimentos políticos de esquerda que, ao filmar um documentário "engajado" sobre sua geração, escolhe, talvez pela atitude de anteposição, Marcelo como personagem. Por ele se apaixona e se deixa intrigar por seu discurso niilista segundo o qual nenhuma ação propicia qualquer tipo de transformação. Sua postura indagativa de militante política, ao ser severamente questionada, procura alcançar as posições ideológicas e filosóficas de Marcelo, permitindo então ao próprio espectador adentrar por sua vez no inventário de livros e de discos que embasam a visão de mundo do rapaz: Martin Heidegger (1889 - 1976), Céline, Jorge Luís Borges (1899 - 1986), D.H. Lawrence (1885 - 1930), John Coltrane (1926 - 1967).
Do lado oposto, Marta [Jacqueline Myrna (1944)], vedete da televisão, que se comporta conscientemente como mercadoria. Sua vaidade a transforma em sexo em estado latente e, nesse sentido, pode desprezar Marcelo na mesma medida em que Marcelo a despreza ao negar com veemência a boçalidade e a mediocridade do universo criativo da TV. Talvez, hoje, a personagem de Marta seja a mais moderna entre todas elas porque compactua do mesmo cinismo e do mesmo narcisismo que animam o personagem masculino, embora dele não guarde a inércia nem a passividade e não se deixe perder em autocomiserações, mesmo diante de situações humilhantes e sádicas como a que enfrenta na seqüência final.
A cena inicial se repete na cena final: uma árvore majestosa paira em meio ao silêncio. Se no início, a imagem aproxima As Amorosas de Noite Vazia, quando parece dizer que homem e natureza estão irremediavelmente dissociados, no final, ela serve, como uma mãe, para acolher a verdadeira natureza de Marcelo - sua desproteção e fragilidade absolutas, representadas pela posição fetal que o personagem ocupa, caído ao longo das raízes.
Essa visão da natureza como lugar de repouso para a inquietação humana, tanto quanto os longos discursos de caráter filosófico com os quais Marcelo exerce seu poder de sedução com as mulheres, ainda fazem parte dos recursos estílisticos tradicionais de Walter Hugo Khouri. No entanto, o conjunto do filme parece remeter a uma postura mais realista, tornando As Amorosas uma obra singular na sua filmografia. A fotografia recusa o claro-escuro típico do expressionismo que é referência constante de seus primeiros filmes mais autorais; os espaços e a mobilidade das locações substituem o enclausuramento das personagens entre quatro paredes; os planos curtos imprimem um ritmo nervoso à composição das imagens em oposição aos planos longos e de trabalhados movimentos de câmera que tendem a um efeito de contemplação na maior parte de seus filmes; e, ao invés de demorados olhares para o vazio, Khouri busca até mesmo de maneira redundante detalhes naturalistas durante a ação das personagens - ao fazer a maquiagem, no pentear os cabelos, no tomar café, no ouvir música, no ato de comer.
O olhar verista que conduz a narrativa, por sua vez, se confunde com o olhar do próprio personagem e o que pode ser uma crítica exacerbada à alienação e ao recolhimento de Marcelo para dentro de si mesmo parece se transformar em adesão a um olhar do qual nada sobra de positivo do outro, na medida em que o outro pertence exclusivamente a um universo do qual Marcelo não espera nenhum pertencimento, nem ao trabalho, à família, à confiança de transformação revolucionária ou, numa escala ainda mais ampla, até mesmo ao sexo, ora interditado, ora marcado pela crueldade. Esta é a interpretação de Ismail Xavier: "Khouri constrói um mundo que confirma a visão de seu personagem" e o "resto da fita (...) se desenvolve em função da demonstração dessa tese" 2 - a da eterna condenação do ser humano ao consumo da própria angústia.
Talvez por conta dessa ambigüidade, ao contrário do aparente gesto conciliador proposto por Khouri, As Amorosas não logra ultrapassar a forte polarização ideológica do período, impedindo assim uma avaliação menos apaixonada do filme. Ao defender, Salvyano Cavalcanti de Paiva também ataca: "os detratores não poderão - exceto os de reconhecida má fé, la canaille irregenerável - apontar exacerbações individualistas, ausência de preocupação com tudo o que a dinâmica social demanda e envolve no novo filme. Até a costumeira acusação de 'alienado' ou ausente perde vez diante da extraordinária conscientização (...) assumida por Khouri".3
Atualmente, essa discussão só tem sentido histórico. Renato Luiz Pucci Junior4 estuda com rigor a filiação do pensamento de Khouri ao do filósofo Schopenhauer para concluir que As Amorosas aborda o período crucial da transição da juventude para a idade adulta, colocando Marcelo como prova de que, no seu caso específico, "eliminada a última expectativa otimista", o resultado é a "perda de qualquer elemento que suavizasse seu olhar para o mundo. Marcelo tornou-se adulto: um cínico ou (...) um cara de nada".
Notas
1 Khouri, Walter Hugo, Artes:, v.4, n.17, 1969, p.1
2 Xavier, Ismail, Diário de São Paulo, 1969
3 Paiva, Salvyano Cavalcanti de, Correio da Manhã, 10 abr. 1968
4 Pucci Junior, Renato Luiz, O Equilíbrio das Estrelas, p.99.
Fontes de pesquisa 10
- AZEREDO, Ely. As Amorosas II. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 dez. 1968, p.2.
- KHOURI, Walter Hugo. Fossa Sim! Fome Não! Artes: São Paulo, v.4, n.17, 1969, p.1.
- LAURA, Ida. As Amorosas. O Estado de S. Paulo, 21 set. 1968. Suplemento Literário.
- NASCIMENTO, Hélio. O reino da imagem. Porto Alegre: UE/Secretaria Municipal de Cultura, 2002. p. 266-267. [crítica originalmente publicada em Jornal do Comércio, Porto Alegre, 26 nov. 1968].
- PAIVA, Salvyano Cavalcanti de. Angústia de jovens modernos resumida em filme sem concessões. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10 abr. 1968.
- PFEIFFER, Maria Aparecida Rodrigues. Repensando Khouri. Cinemais, Rio de Janeiro, n.2, nov.-dez. 1996, p. 109-116.
- PUCCI JUNIOR, Renato Luiz. O equilíbrio das estrelas: filosofia e imagens no cinema de Walter Hugo Khouri. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p. 35-116.
- RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema Estado e Lutas Culturais: Anos 50, 60, 70. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1983. p. 60-64 e 70-75.
- STIGGER, Helena. Marcelo: o imaginário burguês de Walter Hugo Khouri: comunicação e psicanálise no cinema. 2007. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), 2007.
- XAVIER, Ismail. Angústias e Natureza Humana. Diário de São Paulo, 1969 [documento P. 542/35 do acervo da Cinemateca Brasileira].
Como citar
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AS Amorosas.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67319/as-amorosas. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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