Ordenação

Tipo de Verbete

Filtros

Áreas de Expressão
Artes Visuais
Cinema
Dança
Literatura
Música
Teatro

Período

A Enciclopédia é o projeto mais antigo do Itaú Cultural. Ela nasce como um banco de dados sobre pintura brasileira, em 1987, e vem sendo construída por muitas mãos.

Se você deseja contribuir com sugestões ou tem dúvidas sobre a Enciclopédia, escreva para nós.

Caso tenha alguma dúvida, sugerimos que você dê uma olhada nas nossas Perguntas Frequentes, onde esclarecemos alguns questionamentos sobre nossa plataforma.

Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

Noite Vazia

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 19.04.2023
1964
Noite Vazia é o sexto filme do cineasta Walter Hugo Khouri (1929-2003) e por ele considerado como o ponto decisivo de sua carreira. A despeito das inquietações filosóficas e psicológicas que preocupam o realizador desde a década de 1950 e que só agora tomam conta da cena de Noite Vazia, os trabalhos anteriores de Khouri podem ser vistos como esb...

Texto

Abrir módulo

Noite Vazia é o sexto filme do cineasta Walter Hugo Khouri (1929-2003) e por ele considerado como o ponto decisivo de sua carreira. A despeito das inquietações filosóficas e psicológicas que preocupam o realizador desde a década de 1950 e que só agora tomam conta da cena de Noite Vazia, os trabalhos anteriores de Khouri podem ser vistos como esboços de um autor à procura de um estilo, presos que ainda estão a gêneros clássicos do cinema, como o melodrama noir, o filme de aventura ou o filme histórico. Com Noite Vazia, Khouri não apenas atinge o nível técnico internacional almejado pelos defensores da política de grande estúdio da Companhia Cinematográfica Vera Cruz (do qual se torna proprietário) como passa a defender com rigor a forma e o tema dos quais não se afasta nos 40 anos seguintes, uma contínua formulação de um modelo pessoal e universalista de cinema. 

A trama se inicia com a descrição de uma paisagem urbana noturna, carregada de imagens que privilegiam as luzes, as sombras e os reflexos, no interior da qual dois homens, Luiz Augusto [Mário Benvenutti (1926-1992)] e Nelson (Gabriele Tinti), encaminham-se para mais uma aventura sexual. O primeiro é casado, pragmático, quer o proveito de tudo que o dinheiro pode lhe oferecer, inclusive a possibilidade de ser direto nas abordagens amorosas; o segundo o contrário, é tímido, angustiado, querendo encontrar no sexo a mulher ideal que pode lhe propiciar a ruptura com o tédio de uma vida moderna e burguesa, representado pela perambulação dos dois homens por bares, uma boate e por final a um restaurante japonês. Neste último lugar, graças a um amigo em comum, que desiste do programa, encontram duas mulheres que aceitam o convite para a noitada. O grupo se retira do espaço inicial - a grande cidade - e se isola na intimidade da garçonnière de Luiz Augusto, um espaço fechado onde os conflitos de ordem existencial se intensificam. 

O antagonismo do par masculino logo se revela na oposição de comportamentos do par feminino. Cristina [Odete Lara (1929-2015)], à maneira de Luiz Augusto, é prática e direta; negocia o preço da noite e o horário de serviço e assume o papel de empresária de si mesma e da amiga. Mara [Norma Bengell (1935-2013)], em oposição, é romântica, sonhadora, e está à procura de um grande romance e de um companheiro. Começam os jogos amorosos: entre Luiz Augusto e Mara, que não o satisfazem, entre Nelson e Cristina, também insatisfatórios e entre as mulheres, numa provocação constrangedora que Luiz Augusto, embora dono da noite, não chega a desfrutar plenamente.

Quando nenhum entendimento parece possível e, durante uma reconfortante chuva que reorganiza a ação, remetendo os personagens a lembranças da infância, ternura e uma purificação espiritual a que nenhum deles consegue resistir. Após a chuva, a sinceridade dos sentimentos se sobrepõe e o revezamento aleatório entre os casais, surge a correspondência direta entre os pares: Luiz Augusto tenta inutilmente entender-se com Cristina, e Mara e Nelson se entregam a uma relação ritualizada, etérea, inspirados  em imagens eróticas de um livro indiano , que Mara acaba de folhear.
A trama se encerra com uma nova descrição da paisagem urbana, desta vez ao amanhecer, em que a normalidade cotidiana da cidade e a luz natural se opõem a imagem da paisagem noturna do filme. Mara ainda sonha com Nelson, mas este se compromete com Luiz Augusto a reunir-se com ele logo à noite, na qual outros encontros proporcionam novas aventuras.

A cidade, que abre e fecha o filme, comporta-se como um quinto personagem que "emoldura" o drama existencial dos quatro protagonistas. Misteriosa e alucinante no início, bucólica ou melancólica no final, ela pode representar tanto a expectativa primordial do desejo quanto o retorno eterno da insatisfação - características que pertencem aos personagens e que aparecem projetadas sobre a cidade. Com efeito, essa metrópole "psicologizada" não é o lugar onde ocorrem as tensões entre as classes sociais, mas o espaço onde repercutem apenas os dramas interiores dos personagens.
Para quem não aceita a obsessão universalista de Walter Hugo Khouri, essa cidade, colocada de maneira tão atuante no filme, é apenas a medida exata de uma pretensão internacionalista, porque nela se vê a parcela de uma metrópole que existe em qualquer lugar do mundo, com seus prédios, vitrines, semáforos, espaços de luxo e de riqueza.

Quando indicado, em meio a muitas resistências, para concorrer ao Festival de Cannes de 1965, Noite Vazia é assim justificado pelo embaixador brasileiro Everaldo Dayrell de Lima: "depois de dezenas de filmes de cangaço, violência e miséria social, o Brasil será representado por um trabalho que mostra o lado positivo da civilização brasileira, com belas vistas de São Paulo e cenas de vida urbana nacional"1. O crítico Rubem Biáfora, na época o maior apreciador da cinematografia khouriana, também esbanja elogios: "Estamos diante de uma obra completa, de acabamento internacional, perfeitamente estruturada e expressiva"2

No entanto, essa corrente internacionalista, da qual Khouri torna-se o representante máximo, recebe acusações veementes por parte dos defensores de um outro modelo de cinema. O descompromisso daquele grupo, ao assumir a crescente modernização do país sem o esboço de qualquer gesto crítico, choca os jovens realizadores do Cinema Novo, que propõem na mesma época um cinema com forte conteúdo nacionalista, politizador e revolucionário ou, no mínimo, de chamamento à realidade social do Brasil. Para eles, Khouri, dono de uma mentalidade "alienada", representa personagens burgueses por meio de uma estética francamente "formalista" - um "tipo comum de culto cinematográfico", como define o cineasta David E. Neves3,  ou de uma postura de um "intelectual servil a qualquer estado de mentira e de injustiça"4. O crítico Ely Azeredo assume uma atitude conciliadora: "Os flagelos da natureza e da injustiça social têm seus cultores de mérito no cinema brasileiro. Khouri inaugurou a visão brasileira do flagelado existencial, urbano"5. 

Uma outra visão pode resgatar a totalidade de Noite Vazia. Por mais que o filme descreva a cidade como um espaço à mercê do domínio psicológico de seus personagens, com a música de Rogério Duprat enfatizando a dramaticidade desse tipo de encenação, ainda assim, para o espectador brasileiro, a cidade tem nome: é São Paulo, o "coração financeiro do país", o retrato vivo da modernização econômica que o Brasil vem experimentando desde meados da década de 1950. Talvez o filme seja uma representação condizente dessa nova condição, como se, de maneira oblíqua, apontasse para o preço que o progresso material cobra das pessoas e visual e sonoramente, uma espécie de horror diante das coisas da metrópole em cujo inventário estivessem incluídos os próprios personagens que se debatem entre a busca prática do dinheiro e do poder que a cidade oferece e o desejo de um amor pleno e absoluto que a cidade lhes subtrai.

Concorda-se então com Khouri, para quem Noite Vazia é a representação de um "funeral da caça ao prazer e à evasão"6. Ou como sugere José Mário Ortiz Ramos, ao retomar o contraponto Cinema Novo-Khouri, é possível que Noite Vazia tocasse "em questões que o 'outro cinema' evitava em nome da seriedade e do político"7. Um estudioso da obra de Khouri, Renato Luiz Pucci Junior, prefere sustentar o verdadeiro ponto de partida do cineasta - a filosofia de Schopenhauer - para quem "a vida para as classes menos favorecidas consiste numa luta incessante contra a necessidade e a dor, enquanto o mundo rico vive em constante e desesperada batalha contra o tédio"8.  A censura, acusando o filme de pornográfico, adia o seu lançamento por alguns meses, o que alavanca a repercussão diante do público, que responde com uma espetacular bilheteria, a despeito de sua complexidade temática.

Walter Hugo Khouri, a partir de Noite Vazia, nunca mais deixa de realizar um cinema cuja narrativa se subordina a esse conceito filosófico e a elaboração formal repete características de seu autor: poucos personagens, um espaço fechado com o contraponto da natureza, enquadramentos rigidamente elaborados e a música apropriada à criação de uma "atmosfera" quase indefinível.

Notas

1.  QUEIROZ, Dinah Silveira. Socorro, embaixador! Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 05 jun. 1965.

2. BIÁFORA, Rubem. Com Noite Vazia a definitiva maioridade do cinema brasileiro. O Estado de S.Paulo, 27 set. 1964.

3. NEVES, David E. Telégrafo Visual. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 196.

4. ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p.120.

5. AZEREDO, Ely. Na Procura de um Extase um Jogo sem Vencedor. [Recorte sem identificação, P. 542/11, do acervo da Cinemateca Brasileira].

6. KHOURI, Walter Hugo. Entrevista a Astolfo Araújo. Status, São Paulo, ca. 1978. [recorte P.542/10, do acervo da Cinemateca Brasileira].

7. RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, Estado e Lutas Culturais: anos 50/60/70. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 48.

8. PUCCI JUNIOR, Renato Luiz. A Paulicéia unca Dorme em Noite Vazia. Teorema, Porto Alegre, n.2, dez. 2002, p. 6.

Fontes de pesquisa 15

Abrir módulo
  • ARAUJO, Inácio. Noite Vazia. In: LABAKI, Amir (org.). O Cinema Brasileiro: de O Pagador de Promessas a Central do Brasil. São Paulo: Publifolha, 1998.
  • AZEREDO, Ely. Na Procura do Êxtase um Jogo sem Vencedor. 1964. [Recorte sem identificação, P. 542/11, do acervo da Cinemateca Brasileira].
  • BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • BIÁFORA, Rubem. Com Noite Vazia a Definitiva Maioridade do Cinema Brasileiro. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 27 set. 1964.
  • GUERRINI JUNIOR, Irineu. A Música no Cinema Brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo, Terceira Margem, 2009, p. 72-73.
  • IACOCCA, Thiago. Bloco de anotações. Plano B, São Paulo, n.4, inverno 2009, p.12-14.
  • KHOURI, Walter Hugo. Entrevista a Astolfo Araujo. Status, São Paulo, ca. 1978 [recorte sem data, P.542/10, do acervo da Cinemateca Brasileira].
  • NEVES, David E. Telégrafo Visual. São Paulo: Editora 34, 2004. p.196-198.
  • PERDIGÃO, Paulo. Cinema. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 01 abr. 1965.
  • PUCCI JUNIOR, Renato Luiz. A Paulicéia nunca Adormece em Noite Vazia. Teorema, Porto Alegre, n.2, dez. 2002, p.5-8.
  • PUCCI JUNIOR, Renato Luiz. O equilíbrio das estrelas: filosofia e imagens no cinema de Walter Hugo Khouri. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001.
  • QUEIROZ, Dinah Silveira. Socorro, Embaixador! Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 05 jun. 1965.
  • RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, Estado e Lutas Culturais: anos 50/60/70. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 46-49.
  • ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 117-120.
  • SALLES, Francisco Luiz de Almeida. Censura e Liberdade de Expressão. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 06 out. 1964.

Como citar

Abrir módulo

Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo: