A Hora da Estrela
Texto
Com financiamento da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) e produção da Raiz Produções Cinematográficas, A Hora da Estrela é o primeiro longa-metragem dirigido por Suzana Amaral (1928-2020), uma adaptação da obra homônima da escritora Clarice Lispector, publicada em 1977. O filme narra a trajetória de Macabéa (Marcélia Cartaxo), migrante nordestina de 19 anos, órfã de pai e mãe, que consegue um emprego como datilógrafa em São Paulo. Nessa cidade passa a dividir um quarto de pensão com três garotas, todas chamadas Maria. Romântica, idealizando no casamento a possível felicidade, Macabéa leva uma vida simples, sobrevivendo com o salário mínimo que recebe. Incapaz de enxergar maldade nos outros e de refletir sobre sua condição de migrante, ela compõe a figura alienada para quem tudo parece natural. Só, perdida em seus devaneios, vive o dia a dia a absorver as mazelas de uma condição social precária, à espera de um grande amor, mas, com certeza, imersa na monotonia que começa desde cedo, quando ouve uma emissora de rádio que repetidamente informa as horas e oferece aos ouvintes curiosidades sobre diversos assuntos.
Com uma personalidade fraca e uma aparência nada atraente, Macabéa é discriminada por todos que a cercam. No trabalho, o chefe a considera feia e suja, entre as companheiras de quarto, é tida como uma mulher esquisita. Olímpico (José Dumont), seu namorado, em uma explosão de impaciência pergunta se ela "está fingindo que é idiota ou é idiota mesmo". Macabéa é o corpo estranho para o qual se dirigem os olhares de decepção e preconceito, ela, por sua vez, parece alheia às críticas. Sua atenção parece mais voltada para as perguntas geradas pelos programas de rádio. Em meio à relação morna, sem a paixão de Olímpico, ela declara que "o que queria mesmo era ser artista de cinema".
Após o namorado abandoná-la, procura a ajuda de uma cartomante [Fernanda Montenegro, (1929)], que lhe diz que vai encontrar o amor ao lado de um estrangeiro rico. Exultante com a notícia, Macabéa compra um vestido e caminha em câmera lenta pela cidade. A vida lhe oferece uma esperança e, em montagem paralela, o filme introduz a figura de um jovem que dirige um belo carro, gerando a expectativa de que a revelação da cartomante está para se concretizar. A reunião dos dois, no entanto, é anticlimática: atropelada pelo homem que deveria ser seu príncipe encantado, Macabéa morre estendida na rua enquanto o fluxo das imagens revela seu último devaneio: o de acreditar ter encontrado o romance ideal e não a morte.
Para compor essa personagem desajeitada, que pede desculpas constantemente, Suzana opta por realizar um filme com poucos diálogos, no qual o silêncio traduz a solidão de uma personalidade com grandes dificuldades em se expressar. Como escreve o crítico José Carlos Avellar, no texto "Berlim aplaude filme do Brasil", "...vestida de modo deselegante, gestos contraídos, sorriso que mostra mais uma cara torta e triste que um ar de contentamento, a atriz [Marcélia Cartaxo] consegue passar para o espectador não apenas o que Macabéa é na sua aparência, mas também o que ela sente e não consegue expressar... São informações e sentimentos que a atriz passa sem diálogos (...) com os olhos, com um tremor leve no canto da boca, com um movimento inseguro das mãos"1. A lentidão dos planos, as locações sombrias e claustrofóbicas, o céu nublado, as cores frias e a fotografia sem brilho também compõem a atmosfera de tristeza e de ausência de perspectivas desse cotidiano.
No filme, a trajetória de Macabéa é contada em estilo realista clássico, simples e direto, sem a intervenção de uma voz narradora ou de comentários exteriores à experiência vivida pela personagem. Dá-se o contrário no livro de origem, no qual vem em primeiro plano a experiência do narrador da história, Rodrigo S. M., que se comunica com o leitor para expressar as angústias inerentes ao processo de criação de uma personagem distante de sua condição social e de sua experiência. Essa reflexão sobre as dificuldades de narrar a vida de Macabéa está ausente do filme cuja apresentação seca dos fatos é a forma de se aproximar da personagem, modular a relação com sua estranheza. Suzana, em depoimento publicado em 1991, na revista Comunicações e Artes, observa que essa opção é proveniente de sua convicção de que a dramaturgia cinematográfica deve se concentrar mais na ação dos personagens do que na reflexão ou nos comentários proferidos por um possível narrador: "A linguagem cinematográfica, a gramática e o código nós copiamos dos americanos (...) [É o cinema americano] quem dita o código: todo mundo assiste e está acostumado. Então, sair daquilo ali, embora você queira romper com isso (...) você vai ter que criar filmes que não serão digeridos, que não podem ser consumidos .... [Minha opção foi a] de começar a estória direto, de simplificar, sem nenhuma intelectualização"2.
A decisão de filmar A Hora da Estrela sem o narrador Rodrigo S. M. é elogiada pela maior parte da crítica especializada em cinema. Em artigos como "The current cinema: virgins, vamps, and floozies", de Pauline Kael, para o The New Yorker, ou "O canto do cisne de uma escritora", de Giovanni Pontiero, publicado em O Estado de S. Paulo, há a tendência de considerar o filme uma adaptação fiel ao espírito contido na obra de Clarice Lispector. Um dos textos mais significativos sobre o longa-metragem é de Tales A. M. Ab'Saber3, no qual o autor procura demonstrar que, mesmo sem a presença do narrador, alguns artifícios cinematográficos conseguem gerar uma relação de impaciência - ou de preconceito - do espectador com a imagem de Macabéa. De acordo com Ab'Saber, essa "afetividade negativa", construída num jogo no qual o espectador se reconhece nos personagens que falam mal de Macabéa, é fundamental como estratégia de linguagem para adaptar A Hora da Estrela.
O primeiro longa-metragem de Suzana Amaral, comercializado em diversos países, recebe a maioria dos prêmios no Festival de Brasília de 1985, como os de melhor filme e direção. No Festival de Berlim, de 1986, Marcélia Cartaxo recebe o prêmio de melhor atriz.
Notas
1. AVELLAR, José Carlos. Berlim aplaude filme do Brasil. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 18 fev. 1986.
2. MANZANO, Luiz Adelmo Fernandes. A Hora da Estrela: do livro ao filme. Entrevista com a cineasta Suzana Amaral. Revista Comunicações e Artes, ano 15, n. 25, jan/jun 1991, p. 25.
3. AB'SÁBER, Tales A. M. O corpo: limites e morte. In: A Imagem Fria. São Paulo: Atelie Editorial, 2003.
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Fontes de pesquisa 16
- A.G.A. La Hora de la Estrella: en el espacio de los susurros. Cine Cubano, n. 118, 1987.
- AB'SÁBER, Tales A. M. O Corpo: limites e morte. In: ______. A imagem fria: cinema e crise do sujeito no Brasil dos anos 80. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
- ADAM, Alfred J. Mac. Falling down in Rio. The New York Times, 18 mai. 1986.
- AMARAL, Suzana. O Interesse pelo sussurro: entrevista. Filme Cultura, n. 48, Nov. 1988.
- AVELLAR, José Carlos. Berlim Aplaude Filme do Brasil. O Estado de S.Paulo, 18 fev. 1986.
- HERMANNS, Ute. Literatura Mais Cinema: Na hora de filmar, esqueça o livro. Cinemais, n. 6, jul./ago. 1997.
- KAEL, Pauline. The Current Cinema: virgins, vamps, and floozies. The New Yorker, 23 fev. 1987.
- MANZANO, Luiz Adelmo Fernandes. A Hora da Estrela: do livro ao filme. Entrevista com a cineasta Suzana Amaral. Revista Comunicação e Artes, Ano 15, n. 25, jan./jun. 1991.
- NAZÁRIO, Luiz. Patético destino. Afinal, 22 abr. 1986.
- PEREIRA, Edmar. Emoção, seja no livro ou no filme. É sempre Clarice. O Estado de S. Paulo, 24 abr. 1986.
- PONTIERO, Giovanni. O Canto do Cisne de uma Escritora. O Estado de S.Paulo, 5 dez. 1987.
- RAMOS, Fernão. A Hora da Estrela. In. LABAKI, A. (org). O Cinema Brasileiro: The films from Brazil. São Paulo: Publifolha, 1998, p.155-158.
- ROTHSTEIN, Mervyn. Suzana Amaral's 'Hour of the star' has come. International Herald Tribune, 24-25, jan. 1987.
- SARRIS, Andrew. The poor are always with us. Voice, 27 jan. 1987.
- WILMINGTON, Michael. Star: ruthless look at ugly ducking. Los Angeles Times, 25 fev. 1987.
- YAMAMOTO, Nelson Pujol. Suzana Amaral, a estrela sobe. Folha de S.Paulo, 7 abr. 1986.
Como citar
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A Hora da Estrela.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67303/a-hora-da-estrela. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7