Nunca Fomos Tão Felizes
Texto
Análise
Nunca Fomos tão Felizes é o primeiro longa-metragem dirigido por Murilo Salles, cuja carreira cinematográfica começa na direção de fotografia em filmes como A Estrela Sobe (1974) e Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), ambos realizados por Bruno Barreto (1955). Livre adaptação do conto Alguma Coisa Urgentemente, do escritor João Gilberto Noll (1946-2017), Nunca Fomos tão Felizes se passa no ano de 1970. Tem como protagonista o adolescente Gabriel (Roberto Battaglin), órfão de mãe que após viver oito anos em um colégio interno religioso finalmente recebe a notícia de que seu pai (Cláudio Marzo), militante de esquerda recém-liberto da prisão, vai ao seu encontro para viverem juntos na cidade do Rio de Janeiro. Na viagem entre o colégio e a nova residência, o relacionamento entre os dois se mostra difícil: envolvido com a oposição ao regime militar, o pai sente a necessidade de manter distância afetiva em relação ao filho, ocultando dele informações sobre a sua atividade política. Ao chegar em Copacabana para morar provisoriamente em um apartamento vazio, Gabriel descobre com espanto que vai viver sozinho durante algum tempo: sem condições de compreender o que se passa e que esta decisão é tomada por motivos de segurança, o adolescente descobre-se isolado em um ambiente desconhecido. Procura, em fotografias e jornais, pistas que o aproximem da figura paterna.
Frustrado pelos acontecimentos e pela impossibilidade de um reencontro familiar efetivo, Gabriel passa os dias diante da televisão, e a se relacionar com as poucas pessoas que conhece no Rio de Janeiro - uma dançarina e um vendedor de cachorro quente, em cenas que pontuam a espera das breves e sigilosas visitas do pai. Isolado, ele vive as consequencias de um contexto político que lhe é desconhecido, enquanto o pai se torna mais melancólico conforme se intensificam as forças repressivas da ditadura militar. Na tentativa de montar o quebra-cabeça envolvendo a própria família, Gabriel lida com questões que envolvem sua própria identidade, mas depara-se com obstáculos incontornáveis, em especial a partir da morte do pai, assassinado pela repressão, quando se dilui de vez a sua busca de uma referência e de um núcleo a partir do qual possa recompor sua afetividade.
Este processo de perda dos vínculos em um contexto autoritário é tema recorrente no cinema brasileiro dos anos 1980, se destacando em documentários como Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho (1933-2014), e ficções como Feliz Ano Velho (1988), de Roberto Gervitz.
Em entrevista concedida para a revista Filme Cultura, em novembro de 1988, Murilo Salles considera Nunca Fomos tão Felizes um projeto afinado com a experiência do Cinema Novo. O diretor, ao apontar esse Movimento como influência direta em seu longa-metragem, principalmente no que se refere à dramaturgia política, não deixa de apontar uma diferença decisiva entre sua obra e aquela cinematografia: "Em geral, os filmes políticos partem do geral. Por exemplo, Eles não Usam Black-Tie. Tem todo um corpo social bem estabelecido, de luta de classes etc. [Leon Hirszman(1937-1987)] parte do geral, de uma situação de fábrica, de greve, para o particular da relação [dos personagens] (...) Eu, [pelo contrário], prefiro muito mais ver o particular (...). Não tenho a pretensão de entender o todo". Mesmo sendo um entusiasta do Cinema Novo, Salles procura se afastar daquela narrativa cinematográfica na qual a sociedade brasileira como um todo está presente, optando por discutir política em um nível mais particular.
Em Nunca Fomos tão Felizes, essa proposta se evidencia pela opção em concentrar as ações de Gabriel no interior de um apartamento. Neste lugar pouco iluminado, onde o personagem encontra-se confinado define-se um microcosmo que espelha a condição política do Brasil de 1970. A sensação de vazio e a solidão vivenciadas pelo protagonista, os escassos diálogos, e o imobilismo vivido no decorrer do filme ganham um desfecho trágico em uma de suas últimas sequências, passada no dia 8 de dezembro de 1970. Após a câmera recuar lentamente em travelling, com Gabriel entediado enquanto propagandas ufanistas são transmitidas pela televisão, ele descobre em um dos cômodos o pai a gemer de dor. As tomadas seguintes, que revelam a figura paterna ferida, são construídas em ritmo lento, marcando a impossibilidade de ação do filho e sua solidão irremediável. Em um dos momentos mais impactantes do filme, após ajeitar o corpo sem vida do pai, Gabriel o fotografa com uma câmera polaróide: no plano seguinte, a imagem lentamente ganha forma no papel. A solidão do garoto soma-se a memória visual do pai ausente, no fundo um desconhecido.
Na opinião do crítico Inácio Araújo, no artigo Limbo e labirinto, publicado para a revista Filme Cultura em agosto de 1984, a relação distante entre pai e filho não pode ser explicada apenas como um reflexo do quadro político autoritário existente no Brasil do final dos anos 1970. Em Nunca Fomos Tão Felizes, também é necessário levar em consideração que a trajetória de Gabriel, numa perspectiva psicanalítica envolve uma perda traumática que se pode viver em diferentes contextos históricos. Inácio Araújo aponta a dramaturgia na confluência entre a temática política brasileira e o teor universal do drama familiar: "o filme de Murilo Salles retraça, por vias transversas, um momento da História do Brasil, o mais marcado pela censura e pelo ocultamento de determinados fatos. Todos sabemos disso e o interesse da empreitada me parece estar vinculado diretamente à maneira como Murilo evita o óbvio da denúncia e nos oferece, em troca, um momento cinematográfico bem significativo, de que aliás a psicanálise não se encontra de modo algum ausente" .
Nunca Fomos tão Felizes ganha o prêmio de melhor filme pelo júri oficial e popular do Festival de Brasília de 1984, além de receber, no mesmo ano, o Leopardo de Bronze no Festival de Locarno, na Itália.
Mídias (1)
Fontes de pesquisa 10
- ARAÚJO, Inácio. Limbo e labirinto. Filme Cultura, nº 44, abr./ago. 1984. p. 84-89
- AVELLAR, José Carlos. O centro, a direita, a esquerda. Jornal do Brasil, 29 ago. 1984.
- AVELLAR, José Carlos. Toda a vida mais cem anos. In: BENTES, Ivana (org). Ecos do cinema: de Lumière ao digital. Editora UFRJ: Rio de Janeiro, 2007. p. 93-125
- EU tinha que fazer um filme sobre a geração 68. Entrevista de Murilo Salles. Filme Cultura, nº 48, nov. 1988. p. 6-13
- GOMES, Júlio César de Bittencourt. O cinema brasileiro (em mim). Teorema, nº 13, dez. 2008. p. 44-48
- RAMOS, Fernão Pessoa (org). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987.
- RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe (Orgs). Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Senac, 2000.
- RIZZA, Alice. Murilo Salles: em 'Nunca fomos tão felizes', a estréia de um diretor sensível e seguro. Jornal do Brasil, Revista de Domingo, 13 mai. 1984.
- SCHILD, Susana. Nunca fomos tão felizes: o elo perdido de Murilo Salles. Jornal do Brasil, 23 ago. 1984.
- XAVIER, Ismail. O Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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NUNCA Fomos Tão Felizes.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67294/nunca-fomos-tao-felizes. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7