A Rainha Diaba
Texto
Análise
A Rainha Diaba é o segundo longa-metragem dirigido por Antônio Carlos da Fontoura (1939). A burguesia carioca, tema de seu filme anterior Copacabana me Engana (1968), é substituída aqui por um mergulho na marginalidade. A partir das ideias de Fontoura, Plínio Marcos (1935-1999), escreve um argumento inspirado em figuras e fatos reais que conheceu na região portuária de Santos. No roteiro final, entretanto, Fontoura transfere a história para um antigo reduto boêmio do Rio de Janeiro, o bairro da Lapa, e compõe o personagem principal, que dá título ao filme, em aberta relação com Madame Satã. Muito atuante na Lapa dos anos 1930, Satã era conhecido por sua personalidade impetuosa e extrovertida. O visual, a história e alguns dos traços de Rainha Diaba, interpretado por Milton Gonçalves (1933), são derivados da mitologia associada a Madame Satã.
O sucesso de púbico de Copacabana me Engana estimula o apoio da produtora de Roberto Farias (1932). O projeto nasce da vontade de Fontoura em abordar o derramamento de sangue que está por trás da disputa pelo poder e por território no tráfico de drogas do Rio de Janeiro. Para tal, ele elabora um enredo violento articulado em torno de Rainha Diaba, marginal homossexual que - do quarto de um bordel onde mora - controla o crime organizado. Ora afetuoso, ora irascível, o personagem de Milton Gonçalves suscita medo e respeito. O ponto de partida é a tentativa de Rainha fabricar um novo bandido na região, para posteriormente transformá-lo em bode expiatório dos crimes cometidos por seu amante, que está sendo procurado pela polícia. Catitu [Nelson Xavier (1941)], homem de confiança de Rainha, encontra o alvo ideal: o gigolô Bereco [Stepan Nercessian (1953)], que vive sustentado por uma mulher mais velha, a cantora de cabaré Isa [Odete Lara (1929)]. Catitu convida Bereco para participar de uma série de assaltos. Mas em vez de cumprir a missão encomendada por Rainha, Catitu desenvolve outros planos: movido por ganância, ele incita os subordinados de Rainha a se livrarem de sua tirania e monta um esquema para, através de Bereco, matar o chefe e tomar conta do tráfico. Traição e poder dominam o centro da narrativa, desembocando num desfecho trágico e violento.
Fontoura trata a violência como tema central e motivo estético principal do filme. A sanguinolência é exagerada e propositalmente artificial. É marcante a cena em que Rainha Diaba pune um de seus capangas com uma navalhada no rosto, assim como a exasperante sequência em que tortura Isa, a fim de extrair-lhe informações sobre o paradeiro de Bereco. A imagem de Odete Lara de cabelos e vestido verdes, tanto nessa cena da tortura como no número musical que ela protagoniza anteriormente (cantando um bolero), demonstra que, ao construir um painel de tipos pertencentes ao universo marginal, Fontoura destaca o apelo visual do mundo retratado, como se os personagens tivessem uma vida voltada, no fim da contas, para a imagem que deles é criada (por outros e por eles mesmos). Mais que a realidade do submundo, interessa sua mitologia. Os diálogos desfilam um repertório interminável de gírias e expressões da malandragem, a ponto de, em certas cenas, os personagens parecerem falar um dialeto próprio. Num ambiente de forte estilização, a trama policial se torna foco de fantasia e espetáculo farsesco.
Fontoura define o filme como um "thriller pop-gay-black"1. Tal definição tripartite revela bastante sobre o ambiente cultural em que A Rainha Diaba se insere, e com o qual dialoga intensamente. Os componentes gay e black remetem diretamente às culturas das chamadas, à época, minorias, que ganham espaço nas produções artísticas dos anos 1970, sobretudo nos Estados Unidos. Há, em particular, um parentesco estético com os filmes norte-americanos de blaxploitation, gênero em voga no começo da década que - sempre com atores negros nos papéis principais - entrecruza os códigos do thriller policial com referências culturais e sociais da população negra das grandes cidades norte-americanas.
A trilha sonora e a cenografia são fundamentais para a atmosfera do filme. O compositor Guilherme Vaz (1948), que trabalha com cineastas como Júlio Bressane (1946) e Nelson Pereira dos Santos (1928), cria para A Rainha Diaba uma trilha bem ao gosto do cinema policial dos anos 1970, com influências do jazz, do rock e da funk music norte-americana. Já os cenários multicoloridos pendem para o kitsch e remetem à cultura dos cabarés, de raiz mais antiga no imaginário popular brasileiro. A direção de arte cabe a Angelo de Aquino (1945-2007), que, ao lado do diretor de fotografia José Medeiros (1921-1990), tinge o filme com cores vivas.
A Rainha Diaba é exibido no Festival de Brasília e na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, em 1974. É lançado comercialmente no Brasil no mesmo ano, e recebe críticas favoráveis nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. Orlando L. Fassoni (1943) elogia os diálogos à base de gírias e diz que se trata do filme "mais barroco, ousado e delirante realizado no cinema brasileiro depois de Macunaíma"2. O crítico Ely Azeredo classifica Rainha Diaba como "obra menos pessoal" que Copacabana me Engana, porém mais instigante, já que Fontoura vira as costas ao universo que conhece empiricamente, a classe média da zona sul do Rio de Janeiro, e se dedica a "experiências e maturidades alheias". Sergio Augusto (1942), na revista Veja, considera o visual laborioso uma opção de "mau gosto" e acusa os atores de se comportarem como "num palco de teatro-revista"3. Anos mais tarde, por ocasião de uma reapresentação do filme, Jairo Ferreira (1945) destacará a "gíria saborosa", o "cuidado da mise en scène" e o "acabamento técnico", compondo o que, em sua ótica, é um "mosaico requintado sobre a sujeira"4.
Notas
1 Em Jornal da Tarde, 21 mai. 1974.
2 FASSONI, Orlando L. O fantástico bailado dos marginais. Folha de S.Paulo, São Paulo, 7 set. 1974. Ilustrada, p. 29.
3 AUGUSTO, Sérgio. Sim e não. Veja, 5 mai. 1974.
4 FERREIRA, Jairo. Rainha diaba, hoje, no Lasar Segall. Folha de S.Paulo, 18 jun. 1977. Ilustrada, p. 30.
Fontes de pesquisa 8
- ARAÚJO, Inácio. Duas fases de Madame Satã. Folha de S. Paulo, 26 fev. 2003. Ilustrada, p. 8.
- AUGUSTO, Sérgio. Sim e não. Veja, 5 mai. 1974.
- AZEREDO, Ely. As artes da diaba. In: _______. Olhar crítico: 50 anos de cinema brasileiro. Prefácio de Alberto Dines. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009. (Texto originalmente publicado em Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1974).
- FASSONI, Orlando L. O fantástico bailado dos marginais. Folha de S. Paulo, São Paulo, 7 set. 1974. Ilustrada, p. 29.
- FERREIRA, Jairo. Rainha diaba, hoje, no Lasar Segall. Folha de S.Paulo, 18 jun. 1977. Ilustrada, p. 30.
- MARTINO, Telmo. Num envelope fechado, o grotesco de papel-crepom. Jornal da Tarde, 5 set. 1974.
- ORICCHIO, Luiz Zanin. Personagem também foi tema de A rainha diaba. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. D3.
- UMA aventura de bandidos e bonecas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 set. 1974. Ilustrada, p. 17.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
-
A Rainha Diaba.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67288/a-rainha-diaba. Acesso em: 05 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7