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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

O Cangaceiro

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 08.04.2024
1953
O Cangaceiro (1953), escrito e dirigido por Lima Barreto, com diálogos criados por Rachel de Queiroz (1910 - 2003), é uma produção monumental da história da Cinematográfica Vera Cruz. Realizada com orçamento milionário, tem início em 1952, e as filmagens externas são realizadas em Vargem Grande do Sul, interior de São Paulo, onde cria se um ambi...

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O Cangaceiro (1953), escrito e dirigido por Lima Barreto, com diálogos criados por Rachel de Queiroz (1910 - 2003), é uma produção monumental da história da Cinematográfica Vera Cruz. Realizada com orçamento milionário, tem início em 1952, e as filmagens externas são realizadas em Vargem Grande do Sul, interior de São Paulo, onde cria se um ambiente semelhante ao sertão nordestino. O roteiro se inspira na lendária figura de Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, morto e decapitado em 1938, após cerco realizado pela policia volante.

O Cangaceiro é o primeiro representante do nordestern, gênero que inscreve o cangaço em narrativas de aventura e basicamente transpõe para o nordeste brasileiro os códigos ficcionais do western. O nordestern brasileiro se cristaliza no conjunto de filmes que transformam o cangaço em "matéria-prima para a confecção de um imaginário nacional, ajustado a uma noção dominante de filme de aventuras"1,  ou seja, trata-se de criar dramas de aventura convencionais a partir de figuras míticas do sertão nordestino. Glauber Rocha credita ao crítico Salvyano Cavalcanti de Paiva a alcunha do termo "nordestern", que passa a designar o gênero cinematográfico dedicado ao cangaceiro, "personagem indispensável no romanceiro popular do Nordeste", e já presente na literatura através de autores como Franklin Távora (1842-1888) e José Lins do Rego (1901-1957).2 

Teodoro (Alberto Ruschel) e Capitão Galdino (Milton Ribeiro) são os personagens principais. Duas sequências, situadas ainda no início, caracterizam de modo claro o grupo de cangaceiros liderado por Galdino. Primeiro, ele expulsa funcionários que trabalham na medição de terras para a futura construção de uma estrada. Seu autoritarismo é temperado por sua rusticidade comportamental e sua falta de escolaridade, expostas em suas falas de apresentação. Depois, ele comanda um ataque gratuito à população indefesa de uma pequena cidade, permitindo ao filme caracterizar seu bando como ameaça social, que não respeita a lei e a propriedade. O ataque coloca em jogo as duas linhas narrativas principais do filme, que se desenvolverão em paralelo: a formação da Terceira Volante, que ficará no encalço dos cangaceiros, e o rapto de Olívia (Marisa Prado), a jovem professora da cidade, que dará origem à parte romântica do enredo. A outra personagem feminina importante é Maria Clódia (Vanja Orico), mulher incorporada ao cangaço e, como insinuado em diálogo do filme, torna-se parceira sexual de todos os membros do bando, portanto personagem contrastante com a figura de mulher pura e pudica da professora.

Enquanto o conflito volante-cangaço representa a polaridade ordem-desordem, engendrando ações (violência, emboscadas, tiroteios) de alto potencial de espetáculo, o envolvimento de Olívia com Teodoro motiva uma trama romanesca pautada em modelos melodramáticos já consagrados e normatizados pelo cinema clássico-narrativo. Apaixonado por Olívia, Teodoro foge com ela.  Ele se diferencia dos demais cangaceiros por sua educação e polidez, assim como por seu físico (alto, branco e de olhos claros). Numa pausa noturna durante a fuga, ele explica a Olívia sua origem de sertanejo honesto. Teodoro, destacado dos demais cangaceiros "pela fisionomia e pela linguagem, pelo temperamento e pelos hábitos",3 não partilha a índole criminal do bando.

Com capitão Galdino sedento por se vingar de Teodoro, que considera desertor e traidor, consolida-se, no seio do próprio cangaço, a oposição que move o filme: entre o educado e o selvagem, o moral e o imoral, os sentimentos elevados e os baixos instintos. "Nesse embate, há um solo comum que une os adversários: ambos são fruto da terra".4  Teodoro revela a Olívia sua ligação visceral com a mãe-terra: "Parece até que tenho um bocado desta terra desmanchada no sangue". Depois aponta a sobreposição das duas forças que o empurram ao destino trágico: "Mulher e terra são uma coisa só; a gente precisa das duas pra ser feliz".

Em O Cangaceiro, o sertão é um mundo com lógica própria. As lendas e mitos populares sobre o cangaceiro fornecem a matéria ficcional do filme. O texto inicial diz: "Época imprecisa: quando ainda havia cangaceiros". Essa cartela de abertura situa o passado remoto do universo do cangaço como ainda instaura uma distância entre o narrador e seu objeto. Apesar da construção de uma imagem romantizada do cangaço e de sua celebração como componente importante do imaginário popular nacional, o discurso do filme faz reservas à conduta dos bandidos sociais e condena moralmente sua violência.

Uma cena ilustrativa que foi dito acima é aquela em que Galdino interroga e tortura um homem de seu bando, por este ter acobertado a fuga de Teodoro e não querer revelar o destino do fugitivo. Galdino amarra o homem a um cavalo que sai em disparada. Uma sucessão de breves planos dos rostos dos cangaceiros mostra-os acompanhando com o olhar a trajetória do cavalo. Em seguida, Galdino o interroga novamente, que continua sem dar o destino de Teodoro. A tortura se prolonga, desta vez com o cavalo passando por dentro da parte mais acidentada da caatinga. Uma nova sucessão de planos curtos isola os rostos dos cangaceiros do resto do cenário. A violenta sequência termina com Galdino, enquadrado em um contra-plongé que torna sua figura ainda mais imponente e acentua o caráter impiedoso de sua conduta, se benzendo sobre o cadáver do homem. A rigidez da pose de Galdino, bem como os   rostos inflexiveis, já citados closes dos demais cangaceiros, dá à representação visual do cangaço um aspecto escultórico que casa com a vontade de mitologia expressa no filme. 
 
O Cangaceiro estreia em janeiro de 1953 e em três meses bate recorde de bilheteria no cinema brasileiro. Ganha o prêmio de melhor filme de aventura e de melhor trilha sonora com a música Mulé Rendeira no Festival de Cannes, do mesmo ano. É vendido para a Columbia Pictures pelo dobro de seu custo e exibido em inúmeros países.

A fortuna crítica sobre O Cangaceiro é vastíssima, o que se explica pela enorme repercussão nacional e internacional que o filme obtém. O elogio mais comum é a exaltação da qualidade técnica e artística, como se lê no jornal O Globo em 11 de abril de 1953: "realização técnico-artística de primeira ordem e um espetáculo dramático de grande intensidade". Mesmo críticas desfavoráveis fazem parenteses para elogiar a fotografia de Chick Fowle, a montagem de Oswald Hafenrichter ou a indumentária estilizada e o aproveitamento do folclore musical nordestino na trilha sonora.

Walter da Silveira escreve uma longa crítica para o Diário de Notícias do estado da Bahia, publicada em 3 de maio de 19535.  Para ele, as incorreções históricas e geográficas não minimizam o filme como obra de arte bem realizada estilisticamente nem como expressão de um tema nacional e popular, mas contribuem para a "vacuidade sociológica da história". Ele reprova também o lado romântico da narrativa, que transforma "numa vulgar história individual de dois personagens sem amplo interesse uma história rigorosamente coletiva, de largo painel de massas ". O crítico teria preferido um filme menos brilhante esteticamente porém mais autêntico na visão do agreste brasileiro e da violência oriunda da injustiça social no campo.    

Em sua Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963), Glauber Rocha (1939-1981)  faz objeções severas ao aspecto fatalista do drama, à sua mistificação do cangaço, ao "pitoresco fácil", ao "espírito melodramático". O cotidiano do acampamento dos cangaceiros é narrado, segundo Glauber, "sem o mínimo senso crítico", em função de um humor e de uma descrição de costumes enganosa. Por isso ele acredita que O Cangaceiro é um filme "negativo" para o cinema brasileiro, pois sua "habilidade técnica" estaria "a serviço de ideias que atrasam o processo de consciência e prática do povo brasileiro".

Por conta da exibição em Cannes, o crítico francês André Bazin escreve sobre O Cangaceiro: "Raramente vemos, no cinema, um sentido tão verdadeiro da violência, de uma poesia crua tomada emprestada às fontes da história e da raça"6.

Notas

1 XAVIER, Ismail, Sertão Mar - Glauber Rocha e a estética da fome. 2. ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

2 ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 91.

3 SILVEIRA, Walter da. Walter da Silveira: O eterno e o efêmero. Organização e notas José Umberto Dias. Salvador : Oiti Editora e Produções Culturais, 2006. p. 292.

4 XAVIER, Ismail, Sertão Mar - Glauber Rocha e a estética da fome. 2.ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, p. 164.

5 Walter da Silveira, op. cit., pp. 289-93.

6 Le Parisien Liberé, 18 abr. 1953.

Fontes de pesquisa 12

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  • BARRETO, Lima, "História secreta d'O Cangaceiro e outras miudezas", Filme Cultura nº 11, novembro de 1968, pp. 50-53.
  • BAZIN, André. Le Parisien Liberé. Paris 18 abr. 1953.
  • CAETANO, Maria do Rosário (org). Cangaço: O nordestern no cinema brasileiro. Brasília: Avathar, 2005.
  • DIAS, José Umberto (org.), Walter da Silveira - O Eterno e o Efêmero. Salvador: Oiti Editora e Produções Culturais, 2006, pp. 289-293.
  • FACO, Rui. Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. 226 p. il.
  • GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Embrafilme, 1981.
  • MARTINELLI, Sérgio. Vera Cruz: imagens e história do cinema brasileiro. São Paulo: A Books, 2002.
  • ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 85-97.
  • SILVA, Alberto. O filme de cangaço. Filme Cultura, v. 3, n. 17, nov./dez. 1970, pp. 42-49.
  • SILVEIRA, Walter da. Walter da Silveira: O eterno e o efêmero. Organização e notas José Umberto Dias. Salvador: Oiti Editora e Produções Culturais, 2006. p.292.
  • TOLENTINO, Célia. O Rural no Cinema Brasileiro. São Paulo: Ed. UNESP, 2001.
  • XAVIER, Ismail. Sertão Mar - Glauber Rocha e a estética da fome. 2.ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, pp. 147-168.

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