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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

Hitler do IIIº Mundo

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 14.06.2016
1968
Análise

Texto

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Análise
Hitler III Mundo é dirigido por José Agrippino de Paula (1937-2007). Único longa-metragem em 35mm do cineasta, realizado com recursos limitados e filmado entre os anos de 1968-69, período de intensificação da repressão militar no Brasil. Na época, Agrippino já apresenta significativa atuação nos campos da literatura, com os romances Lugar Público (1965) e PanAmérica (1967), e do teatro, com as peças Tarzan, III Mundo (1967) e Rito do Amor Selvagem (São Paulo - 1969). Contribuíram para a realização do filme as experiências de montagem e laboratórios de preparação de atores feitos junto ao SONDA, grupo teatral coordenado por Agrippino e sua então esposa Maria Esther Stockler (s.d.).

Hitler III Mundo trata da crise de identidade em um momento de repressão política. A ação organiza-se em torno de um ditador impotente, durante a instauração do fascismo no terceiro mundo. Neste filme, o golpe de Estado está associado ao imperialismo e à forte presença dos meios de comunicação de massa. Às margens do núcleo de repressão, dois estranhos heróis tentam contrapor-se ao movimento militar. Os mesmos parecem saídos das histórias em quadrinhos, mas seu fim é tão nefasto quando aquele do próprio país: o Samurai pratica Harakiri; o monstro de pedra é capturado pela polícia após tentativa de suicídio. A trajetória dos personagens apresenta-se através de uma narrativa fragmentada, constituída de blocos narrativos. Tais protagonistas, em suas aparições grotescas, raramente se encontram. Tudo funciona como uma espécie de caleidoscópio, unindo espaços, formas de atuação, sonoridades e ambientes diferentes. O poder do ditador é constantemente ironizado. Inicialmente, sua figura é associada àquela de um robô: um objeto maleável que executa ordens mecânicas e tem medo de baratas. Ao longo do filme, percorre construções abandonadas, quartéis e salas de tortura. Mesmo depois de assassinado pelo herói japonês, o ditador sobrevive como uma figura patética. O Samurai, protagonizado por Jô Soares, anda por uma favela povoada por garotos famintos e pelas imediações do Minhocão. Seus gestos são animalescos. Na cena final, por exemplo, debate-se com um pedaço de carne crua na boca, diante de uma televisão. O monstro de pedra, por sua vez, transita por terrenos baldios e pelas coberturas de prédios de São Paulo. Atua em ambientações lunares, sem gravidade, sugeridas pelo contato da fantasia de espuma laranja com o asfalto urbano.  

A nação brasileira é retomada a partir do lixo e dos dejetos industriais. Isso aproxima Hitler III Mundo do universo de obras do Cinema Marginal, tais como as paisagens limítrofes de A margem (1967), ou os terrenos sub-urbanos de Gamal, o delírio do sexo (1969). Ao lado das paisagens urbanas em decomposição, a falta de sincronia entre sons e imagens contribui para agredir o espectador. O pessimismo atinge a narrativa do filme. Suas ações não têm conclusão. Há uma tendência à representação do abjeto, envolvendo gritos e seres humanos com características animais. Entre os exemplos: o já referido Samurai, ou ainda as crianças de uma favela, que são presas em um cercado de madeira como porcos. Outra aproximação de Hitler III Mundo com a produção marginal é o diálogo com uma cultura cosmopolita, especialmente a americana. A mesma é incorporada de forma crítica, com o objetivo de repensar o Brasil e o terceiro mundo. 

Aproximando-se da Arte Pop, um dos principais procedimentos do filme de Agrippino é a colagem de elementos extraídos da cultura de massa. Isso está presente em três instâncias do filme: os corpos dos personagens parecem estar em descompasso com os espaços percorridos; na banda sonora são usados elementos de origens diversas, sem relação entre si; o filme está organizado em blocos de ações interrompidas, como as tiras de uma história em quadrinhos. O universo criado é fragmentado e repetitivo, com referências ao rádio, à televisão e ao cinema hollywoodiano. Uma seqüencia em especial chama a atenção. No meio de uma favela, rodeado por uma multidão de crianças, percebe-se o caminhar de um samurai de quimono branco e face de clown. 

O mesmo afirma-se por meio de um figurino e de uma gestualidade estereotipados. O branco do quimono contrasta com a sujeira do chão. Ele parece não pertencer àquele ambiente. Espreguiça-se de forma debochada; leva a mão ao peito para coçar uma ferida. Na banda sonora, há uma mistura de sons, que são trocados como estações radiofônicas. Inicialmente, os tensos acordes de um órgão sugerem tonalidades épicas. Logo são substituídos por falas em uma língua estranha, aparentemente afro, e pelo som de helicópteros. Um breve silêncio é tomado por sons tribais, que se transformam numa contagem regressiva, em língua oriental. Por fim, escuta-se a marcha de uma infantaria. Nesta seqüência, feita em um único plano, diferentes ambientes são criados a partir da colagem. Baseada no acúmulo de informações, a trama do filme reproduz um dos traços típicos dos meios de comunicação de massa. De forma mecânica, são articulados fragmentos pertencentes a diferentes origens culturais. Em meio aos ruídos ensurdecedores, o herói-samurai encontra-se paralisado. Ele assume a figura de um Moisés do submundo, cuja passagem salvadora não é concluída. Tal movimento culminará posteriormente com o suicídio do próprio protagonista. 

Esta é a resposta geral de Hitler III mundo em um momento de agonia cultural e política da nação. Ridiculariza-se o golpe de Estado através da figura de um ditador impotente. Ironiza-se a possibilidade de resistência por meio de heróis suicidas. A colagem, recurso típico da Arte Pop, é incorporada de forma politizada. Ela contribui para a construção de um mundo repleto de sarcasmo e perplexidade. Num terceiro mundo em estado de sítio, a repressão política e a alienação cultural são denunciadas como elementos fundamentais. 

Influenciados pela abertura tropicalista à cultura de massa, os experimentos de colagem já estão presentes na obra literária e teatral de Agrippino1 antes de Hitler III mundo. No campo das artes, aproximando-se de uma linguagem pop brasileira, o próprio Agrippino  coloca-se ao lado de artistas como Rubens Gerchman (1942-2008), José Roberto Aguillar (1941) e Antônio Dias (1944). Entre os traços da obra deste escritor-cineasta encontram-se a fragmentação narrativa, o gosto pelos produtos industrializados, bem como o ecletismo dos personagens, inspirados na bíblia, na literatura grega e o cinema americano.

Devido à radicalidade de PanAmérica, Agrippino é citado por Caetano Veloso (1942) como uma das inspirações da Tropicália. Neste livro a ascensão e queda de Marilyn Monroe é apresentada por meio da repetição. Constrói-se um mundo onde tudo é possível, com o predomínio da velocidade dos automóveis e do poder do dinheiro. As cenas se apresentam dividias, como as tiras de uma história em quadrinhos.  As ações se perdem por um ambiente repleto de multidões, helicópteros e mercadorias .

A partir da colagem e da mistura de diferentes linguagens, o grupo teatral SONDA dialoga com o mesmo contexto. As experiências para a montagem de Rito do amor selvagem (São Paulo - 1969) são comentadas por Agrippino, em texto2  posterior à estréia da peça, ocorrida no TBC em 1969. Com a ajuda de Maria Esther Stockler, misturando dança, teatro e happening, o grupo cria um processo de trabalho coletivo. A peça baseia-se em personagens e temas próprios aos meios de comunicação em massa. A trilha sonora, construída a partir da idéia de "texto do desgaste", reúne textos de jornais e revistas, que são repetidos de forma redundante. Este acúmulo de informações sonoras é uma das bases do estilo do longa-metragem de Agrippino.

Depois de finalizado, Hitler do III Mundo fica sem exibição pública por quase duas décadas. Devido ao afastamento em relação ao circuito comercial, a recepção pela crítica só ocorre durante a década de 1980. Parte considerável das críticas escritas a seu respeito foi feita pelo crítico e cineasta Jairo Ferreira (1945 - 2003). A primeira3  aparece pouco antes da primeira exibição da fita, ocorrida em dezembro de 1984. Nela, o crítico esboça uma descrição, caracterizando alguns dos grotescos personagens, identificando sons estranhos e atentando para uma narrativa não-linear.

Outra apreensão do filme é feita pelo mesmo crítico, durante a Mostra Agrippino, realizada no MIS-SP, em 1988. A irracionalidade da fita é referida por Jairo como reflexo do contexto político brasileiro da época, que precedeu o impasse conhecido pela frase "ame-o ou deixe-o". Os personagens interpretados por Jô Soares são definidos como os mais irracionais do filme. O crítico descreve também a estrutura narrativa do filme, que "oscila entre o absurdo, o dada e o fantástico", possuindo uma dramaticidade que evolui da paródia para a fábula. Trata-se de "uma montagem de segmentos independentes com forte incidência no inconsciente coletivo de uma época atroz4.

Outras tentativas de apreensão da obra de Agrippino foram feitas, embora a partir de outros enfoques. Levando em conta a obra escrita do cineasta, pesquisadora Evelina Hoisel5  tematiza a sua relação com a cultura de massas. Já a psicanalista Mirian Chnaiderman realiza Passeios no recanto silvestre (2006), documentário este baseado na tentativa de fazer com que Agrippino voltasse a filmar com uma câmera Super-8. 

Notas:
1 MEDEIROS, Jotabê. Caetano Veloso, uma leitura poética de José Agrippino. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, São Paulo,  19 de agosto de 1988, p.3.
2 PAULA, José Agrippino de. Rito do amor selvagem. Arte em Revista. Ano 3, n.5 , maio 1981. p. 95-96
3 FERREIRA, Jairo. Jose Agrippino de Paula. In: _____. Cinema de Invenção. São Paulo: Max Limonade, 1986. 
4 FERREIRA, Jairo. Hitler Terceiro Mundo, a transgressão de Agrippino. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 13 ago. 1988.
5 HOISEL, Evelina. Supercaos - Os Estilhaços da Cultura em PanAmérica e Nações Unidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980.

Fontes de pesquisa 16

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  • ALBUQUERQUE, Lina. O retorno do Maldito. Jornal do Brasil, Caderno B, Rio de Janeiro, 2 ago. 1988, p.1.
  • CONY, Carlos Heitor. A primeira constatação. In. PAULA, José Agrippino de. Lugar Público. São Paulo: Ed. Civilização Brasileira, 1965.
  • FERREIRA, JAIRO. Hitler Terceiro Mundo, a transgressão de Agrippino. O Estado de S. Paulo, 13 ago. 1988.
  • FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Max Limonad, 1986.
  • FERREIRA, Jairo. Panamerica ressuscita em vídeo-instalação. O Estado de S. Paulo, 24 ago. 1988.
  • HOISEL, Evelina. PanAmérica: Close na civilização e na barbárie. Jornal da Jornada, Salvador, n. 29, p. 20-21, set.2007.
  • HOISEL, Evelina. Supercaos - Os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações Unidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980.
  • MEDEIROS, Jotabê. "Caetano Veloso, uma leitura poética de José Agrippino. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, São Paulo,19 ago. 1988, p.3.
  • MEDEIROS, Jotabê. Por que você caiu fora? O Estado de S. Paulo, Caderno 2, São Paulo, 24 mar. 1988, p.2.
  • PAULA, José Agrippino de. Lugar Público. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
  • PAULA, José Agrippino de. PanAmérica. Rio de Janeiro: Tridente, 1967.
  • PAULA, José Agrippino de. Um depoimento. In: COELHO, Frederico, COHN, Sergio (org). Tropicália. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. p. 188-197.
  • RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968-1973). São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.
  • VELOSO, Caetano. Vendo canções. Folha de S. Paulo, 16 jun. 1984.
  • XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.
  • XAVIER, Ismail. O Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

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