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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

Sermões: A História de Antônio Vieira

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 14.06.2016
1989
Análise

Texto

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Análise
Sermões - A História de Antonio Vieira é dirigido por Julio Bressane (1946), inspirado nos sermões de padre Antonio Vieira (1608-1697). O filme conta com a colaboração do poeta Haroldo de Campos (1929-2003), um dos fundadores do concretismo que, além de prestar, como Bressane define, uma "assessoria poética", participa de uma cena lendo o fragmento inicial das Galáxias, um dos textos mais conhecidos de Padre Vieira, e ainda colabora com uma sugestão de título bem ao estilo concretista: Grande Sermão: Vieira. Embora Bressane acolha a ideia com entusiasmo, o filme termina por se chamar Sermões - A História de Antonio Vieira.

Bressane trabalha no projeto desde 1979. Porém, somente em 1988 consegue assinar o contrato de coprodução com a Embrafilme. Ele cita o próprio Vieira para descrever o histórico de rejeições ao projeto: "O padre Vieira também ouviu, talvez demasiadamente, o não. Dizia: terrível palavra é um 'non'. Não tem direito nem avesso, por qualquer lado que o tomeis sempre soa o mesmo: sempre 'non'"1.

Sermões aborda a vida de Antonio Vieira de forma transversal, sem obedecer a uma ordem cronológica e sem necessariamente estabelecer cadeias lógico-causais de um evento para outro. O filme se distingue, também do ponto de vista estético e pela modéstia de recursos de produção, de um certo tipo de épico histórico. Figura histórica de grande relevo, influente tanto por sua genial oratória quanto por sua atividade como político e diplomata, perseguido pela Santa Inquisição, oponente da escravidão indígena, o padre jesuíta fornece ao filme, acima de tudo, a matriz estética do processo inventivo. O procedimento de Bressane não consiste na transposição cênica de dados biográficos. Ele busca mergulhar nas figuras de estilo e nas façanhas retóricas de Antonio Vieira, notadamente os contrastes e as antíteses barrocas de uma prosa ao mesmo tempo serena e tempestuosa. As palavras de Vieira são a verdadeira matéria do longa-metragem, e a tenacidade de Bressane consiste em procurar a cor e a luz, a angulação e a escala, a entonação e o movimento através dos quais essas palavras se elevarão da cena para assinalar a presença de um ser nobre e grandioso, "um acrobata da língua portuguesa, o ponto máximo que nossa língua e imaginação conseguiram alcançar"2. Os sermões exercem um grande poder de atração, trazendo à tona uma potência sensualista que não se lhes costuma atribuir. 

Vieira é interpretado no filme por Othon Bastos (1933), que salienta a união física entre o corpo e a voz, fazendo uma leitura ativa e enérgica dos sermões, permitindo entrever que ele e Bressane conscientemente operam um cruzamento de Vieira com o personagem Corisco, de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha (1939-1981). A exemplo de outros grandes cineastas da palavra, como o português Manoel de Oliveira (1908) - que também adapta a vida de Antonio Vieira para o cinema, no filme Palavra e Utopia (2000) com Lima Duarte (1930) no papel principal - e o casal Jean-Marie Straub (1933) e Danièle Huillet (1936-2006), Bressane sabe que, por meio da fala, a palavra possui uma duração e um movimento, portanto é gesto, ocupa um lugar no mundo das ações. Pela densidade dos assuntos políticos e teológicos de que trata e pela riqueza fonética das palavras, o texto de Vieira impõe, a princípio, uma resistência, que Bressane consegue vencer através de uma mistura de formas artísticas que envolve, além do cinema, a escrita, o teatro e a pintura.

Há um momento no filme, próximo da metade, em que ocorre uma sucessão de planos de nuvens no céu. A cada plano, o céu vai se mostrando mais tenebroso, mais atormentado, até culminar em uma imagem de ocaso na qual as nuvens parecem elaborar seu próprio movimento dramático, dando a entender não um cosmos harmonioso, porém um mundo repleto de desordens e angústias, um mundo em terribilità - marca artística de um espanto diante do universo que pode ser encontrada, na pintura, desde o Juízo Final, de Michelangelo (1475-1564) até as obras de diversos artistas do barroco tardio. A imagem do céu em fim de tarde em Sermões se assemelha bastante aos pores-do-sol filmados por Jean-Luc Godard (1930) em Paixão (1982) e Je Vous Salue, Marie (1985). O "cinema inocente"3 de Julio Bressane, em Sermões, aponta com maior nitidez a tentativa de conciliação - operação crucial para a compreensão de sua obra - entre uma construção de imagem que fala somente aos sentidos e uma outra que fala ao intelecto e à consciência crítica. A sofisticada plástica do filme é o resultado de uma interseção das duas instâncias: união da experimentação formal do realizador com sua erudição e conhecimento, que cria um diálogo direto entre os elementos sensoriais e conceituais do filme.

Já que um dos procedimentos linguísticos recorrentes em Vieira é o de transcrever textos alheios, Bressane incorpora a Sermões alguns trechos de filmes clássicos, criando um diálogo estrutural com a obra do cinebiografado. Dentre os filmes citados estão A Paixão de Joana D'Arc (1928), de Carl Theodor Dreyer (1889-1968); Eldorado (1921), de Marcel L'Herbier (1890-1979); Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès (1861-1938); e Cidadão Kane (1941), de Orson Welles (1915-1985). De Welles, em particular, Bressane toma emprestadas algumas figuras de uma retórica barroca que acaba envolvendo a história de Vieira na mesma aura de mistério da construção em abismo - e no mesmo jogo maquiavélico em torno do poder - de filmes como Verdades e Mentiras (1963) e A Marca da Maldade (1958). A abundância de contra-plongés em Sermões, por exemplo, é um recurso que remete diretamente a uma estratégia visual recorrente em Cidadão Kane. Se em Welles o recurso estava relacionado à mise-en-scène do poder e da opressão, em Sermões o contra-plongé se revela uma maneira de colocar a fala e o céu num mesmo plano.  

Como de praxe na trajetória de Julio Bressane, Sermões estreia com poucas cópias e é visto por um público restrito, mas é recebido com entusiasmo pela crítica. Na Folha de S.Paulo, Jean-Claude Bernardet (1936) afirma que "Sermões não é um ponto alto do cinema barroco, é um ponto alto da cultura barroca", percebendo os entrelaçamentos que o diretor estabelece entre filmes, músicos, pintores e obras literárias e inserindo-os numa tradição que extrapola o cinema brasileiro e, para ser mais exato, extrapola o cinema. Bernardet enxerga o filme como um encontro de mentes "engenhosas" (Bressane, Vieira, Welles, Glauber, Haroldo de Campos, Sor Juana Inés de la Cruz). Na revista Cine Imaginário, Luís Alberto Rocha Melo afirma que Sermões "é um filme de evolução lenta: as panorâmicas, os vagarosos e inesperados movimentos de câmera, a voz pausada de Othon Bastos, refletem um nervosismo e uma angústia moldados na própria genialidade do padre Antonio Vieira"4.

Obra de profusa intertextualidade, Sermões abre um caminho que Bressane trilha também em Cleópatra (2007): a figura histórica, distanciada pelo tempo e aproximada pelo mito, é ressuscitada em imagens de grande sensualidade e rigor estético.

Notas

1 BRESSANE, Julio A espera de cristal, O Globo,  17 de julho de  1988.
2 Julio Bressane em entrevista publicada em O Globo em 17 jul. 1988.
3 É assim que o realizador se refere a seu próprio projeto de cinema. Ele inclusive possui um média-metragem, de 1980, intitulado Cinema Inocente.
4 Cf. Luís Alberto Rocha Melo. Um filme de Júlio Bressane. In: Cine Imaginário n. 7, dez. 1989-jan. 1990.

Fontes de pesquisa 11

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  • ADRIANO, Carlos e VOROBOW, Bernardo (orgs.). Julio Bressane - Cinepoética. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1995.
  • APOLINÁRIO, Sônia. Os Sermões será lançado este ano na TV. Folha de S. Paulo, São Paulo, 8 out. 1989.
  • AUMONT, Jacques, À quoi Pensent les Films?, Paris: Séguiers, 1996.
  • BRESSANE, Júlio. A espera de cristal. O Globo, Rio de Janeiro, 17 jul. 1988.
  • COURI, Norma. Sermões aplaudido em Portugal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 mar. 1990.
  • DUMAR, Deborah. Bressane filma Vieira. O Globo, Rio de Janeiro, 17 jul. 1988.
  • MELO, Luís Alberto Rocha. Um filme de Júlio Bressane. In: Cine Imaginário n. 7, dez. 1989-jan. 1990.
  • PEREIRA, Edmar. Sermões: palavras em imagens de paixão. In: Jornal da Tarde, São Paulo, 16 de fevereiro de 1990.
  • SESC São Paulo. Cinema Inocente: Retrospectiva Julio Bressane, 2003. 110 p. il.
  • Torino Film Festival, 20, 2002. Julio Bressane. A cura di Simona Fina e Roberto Trigliatto. Torino: Associazioni Cinema Giovani, 2002. 344 p. il.
  • XAVIER, Ismail. Roteiro de Júlio Bressane: apresentação de uma poética. ALCEU: Revista de Comunicação, Cultura e Política, v.6 n.12, jan-jun 2006.

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