Gosto que Me Enrosco
Texto
A canção Gosto que Me Enrosco é gravada pela primeira vez, com esse título, em 1928, por Mário Reis (1907-1981). Ela alcança ampla divulgação no Carnaval do ano seguinte e torna-se umas das músicas mais conhecidas de Sinhô (1888-1930). Contudo, ela tem um trajetória um tanto tortuosa e controversa. Na verdade, sua melodia aparece pela primeira vez na peça musicada Sorte Grande, encenada no Teatro Cassino, em 1926, com o título de Cassino Maxixe e subtítulo A Maçã Proibida, já que a letra, do jornalista, humorista e poeta Bastos Tigre (1882-1957), faz alusão satírica às relações amorosas entre homem e mulher:
A maça melhor é a proibida
Que entre Adão e Eva é repartida
Ela morde tal fruto saboroso
E a oferece ao homem que o aceita pressuroso
Ai, que fruta boa
A tal do amor...
Põe água na boca da pessoa
Quem a come encontra tal sabor
Que quanto mais come
Mais lhe cresce a fome
Mas comendo a fruta proibida
O homem feliz sorri da vida
Entretanto a mulher às vezes sente
Desta aflição com o estômago doente.
No ano seguinte, ela é registrada com esse mesmo nome na gravadora Odeon, sem menção ao autor da letra, com a interpretação de Francisco Alves(1898-1952). Sem alcançar sucesso, Sinhô readapta a canção com nova letra e lança, como costumeiramente fazia, em nova peça musicada, originando a nova canção Gosto que Me Enrosco. A letra continua a fazer referência às relações entre homem e mulher, mas com outros atributos, e passa a incluir um tema recorrente no período: a malandragem, neste caso, a boemia e a orgia:
Não se deve amar sem ser amado
É melhor morrer crucificado
Deus nos livre das mulheres de hoje em dia
Desprezam o homem só por causa da orgia
Gosto que me enrosco de ouvir dizer
Que a parte mais fraca é a mulher
Mas o homem com toda a fortaleza
Desce da nobreza
E faz o que ela quer
Dizem que a mulher é parte fraca
Nisto é que não posso acreditar
Entre beijos e abraços e carinhos
O homem não tendo é bem capaz de ir roubar.
Todavia, a nova canção gera grande polêmica, pois o compositor e pintor Heitor dos Prazeres (1898-1966) reivindica o primeiro trecho como sendo seu. Como o universo profissional do entretenimento musical nesta época é muito precário, a autoria das canções gerava várias discussões. Talvez o entrevero mais conhecido seja o ocorrido em torno do samba Pelo Telefone, de Donga (1890-1974), em 1917. Sinhô se envolve em vários desses embates, ao ponto de alegar que canções eram “como passarinho; de quem pegar primeiro...”. Na verdade, a afirmativa irônica revela que a questão autoral era um problema presente à época, em que criações coletivas, quadras folclóricas e improvisações circulavam livremente na capital da República e as permutas e trocas de todos os tipos entre autores eram normais. Além de Gosto que Me Enrosco, Heitor dos Prazeres reivindica também parte de Ora Vejam Só e, por isso, compõe em parceria com Ignacio G. Loyola um samba criticando a atitude de Sinhô com o sugestivo título Rei dos Meus Sambas, gravado em 1929. O compositor carioca reconhece indiretamente a participação de Heitor dos Prazeres na melodia ao se comprometer a pagar os direitos pelo trecho, sem, no entanto, nunca tê-lo feito.
Do ponto de vista musical, Gosto que Me Enrosco revela um momento importante de transição da canção popular. Seu ritmo saltitante e sua letra jocosa apresentam um perfil “amaxixado”, muito comum nas canções destinadas ao teatro musicado. Mas, a primeira gravação de Mário Reis, em 1928, acompanhada apenas por dois violões, é mais contida, e seu canto falado aproxima-se do samba moderno. Inclusive a indicação do gênero no selo do disco procura identificá-la com o samba. Porém, na segunda gravação do cantor, realizada em 1951, com arranjo de Radamés Gnatalli (1906-1988), retoma-se o perfil “amaxixado”, com forte presença de metais e uma interpretação vigorosa.
Estes “sambas amaxixados” dos quais Sinhô é um dos principais compositores funcionaram como uma espécie de filtragem da produção musical do período e foram importantes para a decantação do que ficaria conhecido como marchinha e samba carnavalesco. De acordo com a historiografia da música popular, canções como Gosto que Me Enrosco, apesar de algumas formulações um pouco mais modernas, correspondem ainda à fase precursora do samba urbano, apresentando um estilo antigo de compor, mais próximo do maxixe. As formas modernas de samba se instituem somente a partir da década de 1930, e se revelam principalmente nas canções de Noel Rosa (1910-1937) e da turma de músicos do bairro Estácio de Sá.
Além dos registros citados, a canção é gravada por Ivon Curi (1928-1995), K-Ximbinho (1917-1980), Carlos Galhardo (1913-1985), Roberto Silva (1920-2012), Paulinho Nogueira (1929-2002), Gilberto Alves (1915-1992), Roberto Fioravante, Altamiro Carrilho (1924-2012), Paulo Tapajós (1913-1990), Turma da Pilantragem, Silvio Santos e Seus Colegas de Trabalho e Beto Barbosa (1955).
Como citar
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GOSTO que Me Enrosco.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra43830/gosto-que-me-enrosco. Acesso em: 05 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7