Retrato de Adalgisa
![Retrato de Adalgisa, 1924 [Obra]](http://d3swacfcujrr1g.cloudfront.net/img/uploads/2000/01/001201061013.jpg)
Retrato de Adalgisa, 1924
Ismael Nery, Adalgisa Nery
Óleo sobre cartão, c.s.d.
55,00 cm x 46,00 cm
Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo - Palácio Boa Vista (Campos de Jordão, SP)
Texto
Análise
A tela Retrato de Adalgisa foi produzida durante aquela que é considerada a última fase de Ismael Nery (1900-1934), iniciada após sua segunda viagem à Europa, em 1927. Marcadas por um acento surrealista, as obras desse período deixam de lado os tons monocromáticos e a luminosidade contrastada, assim como a estruturação geométrica das figuras e dos planos do quadro, presentes em pinturas anteriores, para retomar um estilo mais convencional de representação figurativa. Acentua-se a dicotomia figura/fundo e a iluminação das figuras e ambientes se torna mais clara e homogênea. No entanto, o modo como Nery apresenta a imagem do corpo humano nesse momento de sua trajetória torna-se bastante singular no contexto da arte brasileira. A imagem do corpo passa a ser compreendida como campo de operação do artista, que pode agora intervir sobre sua superfície, praticando incisões e produzindo aberturas que exibem suas estruturas internas. Em momentos mais radicais, Nery viola de modo contundente a integridade e unidade do corpo, esquarteja-o, espalhando os pedaços pelos cenários desérticos nos quais situa seus personagens.
É dentro dessa noção de representação do corpo humano desvinculada de sua realidade exterior e diretamente ligada aos desejos e angústias projetados sobre ele pelo artista que pode ser avaliado o retrato da poetisa Adalgisa Nery (1905-1980). De fato, o corpo da modelo, esposa do artista, é alterado por elementos cuja origem parece estar muito mais na imaginação de Ismael Nery do que na aparência exterior da figura representada. Essas duas realidades, interior e exterior, atuam como vasos comunicantes e é o resultado desse intercâmbio que o artista procura plasmar na pintura. A área esquerda do rosto de Adalgisa é tomada por uma massa escura, de onde surge uma artéria vermelha, motivo pictórico obsessivo nesse período da obra de Nery. Já no lado esquerdo do corpo da figura, surge uma forma vermelha perpassada por linhas negras. As linhas do drapeado da roupa ascendem na direção da massa negra que envolve a cabeça, de modo a provocar a sensação de que a figura da mulher é invadida por formas e energias que ela não controla e contra as quais tampouco reage. A expressão de seu rosto, entre a serenidade e a indiferença, confirma essa impressão.
Tais formas que invadem o corpo da figura podem ser compreendidas como parte da estratégia de exibição de elementos internos do corpo, comum às obras de Nery. Na área negra envolvendo a cabeça de Adalgisa percebe-se nitidamente a forma de uma artéria e a área vermelha do lado direito do corpo pode ser interpretada tanto como um coração inchado, como também uma alusão ao útero da mulher. Ismael e Adalgisa tiveram dois filhos, Ivan, em fevereiro de 1926, e Emmanuel, em junho de 1931. É possível, portanto, que o retrato em questão tenha sido pintado pouco tempo depois dos primeiros sinais da segunda gravidez de Adalgisa.
Se de fato a forma avermelhada for uma alusão ao útero de sua mulher e à geração de seu segundo filho, poderia causar estranheza a atmosfera mórbida e soturna conferida pelo artista à obra, seja pelo amplo uso de tons escuros, seja pela inserção da figura numa paisagem pantanosa e sombria, semelhante às paisagens imaginárias do pintor surrealista francês Yves Tanguy (1900-1955). No entanto, a aproximação entre geração e decomposição é recorrente na obra do artista, que compreende a existência física do ser humano tão somente como o movimento na direção de um polo a outro. Vida e morte, geração e decomposição do corpo são momentos necessários e complementares dessa existência, de modo que a gestação de um novo ser no ventre materno conteria já o princípio que levaria ao seu desaparecimento. Esse é um dos aspectos do essencialismo, sistema de pensamento desenvolvido por Nery durante a década de 1920 e difundido pelo poeta Murilo Mendes (1901-1975).
Em Retrato de Adalgisa parece ser enfatizado mais o primeiro aspecto do essencialismo, ligado ao caráter efêmero e perecível da existência terrena, mas outras obras do mesmo período procuram uma representação de um ser universal, desprovido das contingências de um corpo, e que simboliza a eternidade com o qual cada vida humana se comunicaria. Essa é ainda uma característica da produção de Ismael Nery, que deve ser avaliada em conjunto, sempre se levando em conta o desenvolvimento complementar de suas ideias em obras distintas.
A pintura em questão permite ainda observar um dado relativo à cultura artística de Nery: a cabeça de Adalgisa nesse retrato apresenta notável semelhança com a figura central da tela Nascimento de Vênus (1469), do pintor italiano Sandro Botticelli (1445-1510). O pescoço alongado, cujo movimento para a direita cria uma tensão com a cabeça, que se volta para o lado oposto, os cabelos ruivos caindo em ondulações para a direita, a expressão alheia do rosto, todos esses elementos parecem ter sido inspirados no célebre quadro do artista renascentista. Por tratar-se de um retrato da esposa do artista, a alusão à deusa inspiradora do amor físico e intelectual nos homens não seria descabida.
Por fim, o que se deve destacar em Retrato de Adalgisa é que Ismael Nery produz algo que se pode chamar de um “retrato imaginário” ou “retrato surreal”, no qual o que importa não são alusões à aparência física da modelo, mas sim a realidade plástica conferida pelo artista às obsessões de seu mundo interior, a seus desejos e angústias diante da mulher, da geração da vida e da existência do homem sobre a terra.
Fontes de pesquisa 5
- AMARAL, Aracy. Ismael Nery, 50 anos depois: catálogo. São Paulo, MAC/USP, 1984. Catálogo de exposição artística Ismael Nery.
- BARBOSA, Leila Maria Fonseca; RODRIGUES, Maria Timponi Pereira. Ismael Nery e Murilo Mendes: reflexos. Juiz de Fora: UFJF: MAMM, 2009.
- BENTO, Antônio. Ismael Nery. São Paulo: Gráficos Brunner, 1973.
- MATTAR, Denise. Ismael Nery: 100 anos a poética de um mito. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil; São Paulo: Fundação Armando Alvares Penteado, 2000. Catálogo de exposição artística de Ismael Nery.
- MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. Prefácio Davi Arrigucci Junior. 2.ed. São Paulo: Edusp, Giordano, 1996. 152 p. (Críticas poéticas, 4).
Como citar
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RETRATO de Adalgisa.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra1879/retrato-de-adalgisa. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7