Ricardo Lísias
Texto
Ricardo Lísias Aidar Fermino (São Paulo, São Paulo, 1975). Escritor, crítico e pesquisador. Destaca-se pela experimentação literária para além dos livros, intervindo em diferentes contextos de escrita, como diários, cartas e redes sociais. Ao embaralhar as fronteiras entre fatos e invenções, seus trabalhos suscitam acalorados debates em torno da noção de autoria e dos limites jurídicos acerca da liberdade criativa da ficção e das artes em geral.
Inicia sua carreira literária em paralelo às atividades acadêmicas. Em 1998, diploma-se em letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No ano seguinte, publica seu romance de estreia, Cobertor de Estrelas. Em 2001, defende mestrado pela mesma instituição e, em 2005, conclui doutorado pela Universidade de São Paulo (USP). Ao longo desses anos, atua também como crítico em jornais de grande circulação, como O Estado de São Paulo, e na revista Entrelivros. O trânsito entre pesquisa, crítica e literatura se reflete na estruturação notoriamente autorreflexiva de suas ficções.
Em O Livro dos Mandarins (2009), o autor se debruça em um universo distante de suas experiências pessoais. Nesse livro, com base em entrevistas e observação, a construção das personagens passa por uma extensa pesquisa sobre o ambiente corporativo dos bancos e empresas. A partir da década de 2010, Lísias propõe jogos ficcionais cada vez mais complexos à sua realidade e desloca-se do gesto criativo presente no último livro. Nos romances seguintes, a aproximação com a construção da identidade do autor é tão iminente que ele confere ao personagem-narrador o próprio nome, Ricardo Lísias.
Tanto em O Céu dos Suicidas (2012) como em Divórcio (2013), o narrador-personagem Ricardo Lísias se encontra diante de uma perda dolorosa que exige uma profunda reconfiguração de si. No enredo do livro de 2012, vencedor do melhor romance do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), o suicídio de um amigo provoca a sensação de culpa e exige uma reavaliação de suas atitudes. Já em Divórcio, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Jabuti, o protagonista lida com memórias e arrependimentos diante do término de uma relação amorosa. A indefinição entre realidade e ficção é radicalizada nesse livro: por um lado, apresenta elementos documentais, como uma verdadeira foto do autor quando criança, por outro, a prosa oscila entre reforçar ou denunciar o caráter ficcional da obra. Em determinado momento, o narrador declara desconfiar da veracidade daquilo que relata. Em outras passagens, marcando exterioridade em relação à narrativa, o Lísias forja a característica documental da trama: afirma não haver nenhum enunciado ficcional na escrita em questão.
Nesses romances, ecoa uma tendência da literatura brasileira contemporânea também reconhecível em autores como Bernardo Carvalho (1960) e Verônica Stigger (1973): a inserção de traços autobiográficos em narrativas ficcionais. Já no livro Delegado Tobias (2014), há um deslocamento original na relação entre autor e obra. Desta vez, Ricardo Lísias aparece novamente como personagem, mas o livro é narrado em terceira pessoa.
A linguagem objetiva constitui um inquérito policial assinado pelo Delegado Tobias, que investiga o assassinato de um cidadão chamado Ricardo Lísias, cujo principal suspeito tem o mesmo nome da vítima. Esse enredo alude ao célebre ensaio “A Morte do Autor”, publicado pelo teórico literário francês Roland Barthes1(1915-1980) no final da década de 1960. Objetiva-se sublinhar a distância entre a biografia do autor e a elaboração ficcional.
Delegado Tobias também se destaca por explorar diferentes meios. Antes de ser lançado em e-book, o folhetim, composto de materiais heterogêneos como documentos jurídicos fictícios, correspondências oficiais, e-mails e imagens, tem fragmentos publicados nas redes sociais. Cria-se um perfil da personagem do Delegado no Facebook, que interage e polemiza com leitores e, em especial, com o verdadeiro perfil do autor. O Ministério Público Federal acusa Lísias por falsificação de documentos, desconsiderando o caráter artístico e ficcional do trabalho, mas, por fim, libera a circulação da obra.
O escritor sofre nova acusação judicial, desta vez com o livro Diário da Cadeia (2017), assinado por “Eduardo Cunha (pseudônimo)”. Nesta sátira, Lísias busca ficcionalizar um suposto diário do ex-deputado federal em sua prisão. Eduardo Cunha, responsável pelo comando da sessão da Câmara dos Deputados que culmina no afastamento da ex-presidente Dilma Roussef de seu cargo, entra com uma ação na Justiça solicitando a proibição da circulação do livro e indenização por danos morais. O livro é retirado de circulação.
O caso gera uma reflexão sobre o aumento da presença da censura na arte brasileira nos últimos anos. No ensaio A Literatura no Banco dos Réus – Uma Tentativa de Diálogo entre Arte e Direito (2018), Lísias parte desses ocorridos para refletir sobre a liberdade da literatura e outras manifestações artísticas de intervir e provocar efeitos políticos em seus contextos históricos de emergência.
O trabalho de Ricardo Lísias extrapola o campo estritamente estético e sublinha o debate ético em torno do papel da literatura. A imbricação dos livros com outros meios, além da mistura de diferentes campos de expressão, abre novos terrenos para a produção ficcional na contemporaneidade. Suas apropriações e montagens explicitam a presença estratégica do autor como (re)articulador de discursos.
Nota:
1. BARTHES, Roland. A Morte do Autor. In: _______. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 57-64.
Exposições 1
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18/4/2018 - 3/6/2018
Links relacionados 1
Fontes de pesquisa 10
- ANDRADE, Fábio de Souza. A raiva do enxadrista, Piauí, [s.l.], n. 85, out. 2013. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-raiva-do-enxadrista/.
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- BARTHES, Roland. A Morte do Autor. In: _______. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 57-64.
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- LÍSIAS, Ricardo. Os artistas e a crítica. Celeuma, São Paulo, v. 1, n. 2, set. 2013, p. 47-53. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/celeuma/article/view/85801. Acesso em: 18 jul. 2020.
- LÍSIAS, Ricardo. Vou, com meu advogado, depor sobre o Delegado Tobias [trecho]. Revista Ensaia, [s.l.], 2 jun. 2016. Peça. Disponível em: https://www.revistaensaia.com/tobias-lisias. Acesso em: 18 jul. 2020.
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- MONTEIRO, Pedro Meira. Como falar a verdade? Celeuma, São Paulo, v. 2, n. 3, 23 dez. 2013. Seção resenha. Diponível em: http://www.revistas.usp.br/celeuma/article/view/87719. Acesso em: 18 jul. 2020.
- MUNARI, Ana Cláudia; SILVA, Taíssi Alessandra Cardoso da. O romance de Ricardo Lísias: janelas escancaradas para o sujeito hipermoderno. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 51, n. 4, p. 491-500, out.-dez. 2016. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/23691. Acesso em: 20 jul. 2020.
- SCHWARTZ, Adriano. Tema e narrativa evoluem juntos em romance ‘Divórcio’, de Ricardo Lísias, Folha de S.Paulo, São Paulo, 3 ago. 2013. Ilustrada. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/08/1320743-critica-tema-e-narrativa-evoluem-juntos-em-romance-divorcio-de-ricardo-lisias.shtml. Acesso em: 20 jul. 2020.
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RICARDO Lísias.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa641367/ricardo-lisias. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7