Maria Augusta Ramos
Texto
Maria Augusta Ramos (Brasília, Distrito Federal, 1964). Diretora de cinema. Ao longo da trajetória como roteirista e diretora, desenvolve uma linguagem própria na produção de documentários. Ao estabelecer distância formal em relação à situação que filma, desafia elementos que caracterizariam o cinema documental, como a não encenação.
Forma-se em musicologia pela Universidade de Brasília e, aos 22 anos, muda-se para a Europa, onde faz mestrado em música eletroacústica. Especializa-se em psicologia da música e, em 1990, transfere-se para Amsterdã, para estudar direção e edição na Academia Holandesa de Cinema e Televisão. Brasília, um Dia em Fevereiro (1996), seu primeiro longa-metragem, marca a graduação em direção e edição. No filme, já explora o trabalho com som direto, captado com as imagens, sem acrescentar informações ou trilha sonora alheias à ação. Os personagens – uma estudante, uma esposa de diplomata e um vendedor ambulante – são acompanhados mais no contexto social que os envolve do que em sua vida pessoal.
Além do som direto, os documentários da diretora se notabilizam pela ausência de entrevistas, de comentários para a câmera ou de interação dos personagens com a equipe de filmagem. Esses procedimentos promovem o distanciamento formal do que está sendo mostrado, recurso que o teórico sueco Bill Nichols (1942) chama de “observativa”1. Em muitas cenas de seus principais filmes, a câmera se posiciona com firmeza, mas por vezes causa estranhamento que a filmagem tenha sido autorizada, tamanha a naturalidade dos personagens, quase sempre não atores.
Maria Augusta questiona o nível de encenação de não atores em uma situação real, mas filmada, e de atores que compartilham o contexto social dos personagens que representam para a câmera. Filma ambientes da esfera institucional ou pública sem intervir em seu funcionamento cotidiano e sem se dirigir ao espectador. Dessa forma, naturaliza a presença da câmera e exibe as relações sociais em sua concretude: os personagens são muito mais atores sociais, retratados na relação uns com os outros, do que indivíduos, dos quais o filme aproxima o espectador por meio de narração em off, entrevistas ou outros recursos que não interfiram nas imagens e sons captados diretamente.
Entre 1996 e 1999, Maria Augusta filma diversos curtas-metragens, incluindo a série infantil de seis episódios Butterflies in Your Stomach (Borboletas no Seu Estômago), para a TV holandesa, indicada a prêmio no Festival Cinekid, na Holanda. Do contato com o mundo infantil nasce Desi (2000), que tem como protagonista uma menina de 11 anos vinda de uma família disfuncional da classe média de Amsterdã. O filme ganha prêmios de público e de melhor documentário em festivais holandeses.
Na década seguinte, sua cinematografia se volta para o tema que a consagra como documentarista: a relação entre atores envolvidos – positiva ou negativamente – com a lei e o sistema de justiça brasileiro. Justiça (2004) acompanha os processos de cinco réus de varas criminais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A cineasta se concentra nas situações de audiências, com muitas tomadas dentro do tribunal e poucas que acompanham a vida privada dessas personagens. Constrói, apenas por meio da montagem e sem didatismos, uma crítica da relação presente nos ritos oficiais de administração da justiça, entre o Estado brasileiro e as camadas mais pobres da sociedade.
Juízo (2006), mantém o distanciamento, mas tensiona a fronteira entre documentário e ficção: para dar rosto aos adolescentes levados a responder à 2ª Vara da Justiça do Rio, que, por lei, não podem ter sua imagem divulgada, a diretora filma os infratores de costas e, para as tomadas de frente, seleciona um elenco de adolescentes não infratores, que repete o conteúdo dos autos de cada caso, fundindo na montagem o personagem real e seu substituto.
Ao retratar o Morro dos Prazeres (2013), no bairro carioca de Santa Teresa, a cineasta mais uma vez apresenta a relação entre Estado e sociedade civil, agora por meio da instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), com a expulsão do tráfico de drogas e a convivência entre moradores e policiais.
O Processo (2017), que narra o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, ganha prêmios de melhor filme nos festivais Visions du Réel (Suíça), Documenta Madrid (Espanha), Festival de Cinema de Lisboa (Portugal) e Festival de Documentários de Buenos Aires (Argentina), além do Prêmio Especial do Júri no Festival de Havana (Cuba).
Em 2014, recebe o Prêmio Marek Nowicki, da Helsinki Foundation of Human Rights, pela sua obra. Retrospectivas de sua filmografia são realizadas em Montreal (Canadá), Praga (República Checa), Rio de Janeiro, Mar del Plata (Argentina) e Madrid (Espanha).
Em sua filmografia, Maria Augusta Ramos retrata de forma sóbria, centrada no distanciamento formal, as relações entre cidadãos e poder público. Distende os limites entre ficção e documentário e provoca reflexões tanto sobre a linguagem cinematográfica quanto sobre o sistema institucional brasileiro – representado quer pelo judiciário, quer pela polícia quer pelo congresso brasileiro. Por meio de uma forma original de retratar a realidade, faz emergir as dimensões humana, social e política do contexto observado.
Notas
1. Nichols (2005) defende que cada documentário tem uma “voz própria” para construir sua narrativa, conceituando seis estilos: poético, expositivo, observativo, participativo, reflexivo e performático.
Obras 1
Fontes de pesquisa 14
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MARIA Augusta Ramos.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
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