Nhô Caboclo
Texto
Manuel Fontoura (Água Belas, Pernambuco, 191? – Recife, Pernambuco, 1976). Escultor. Explorador de matérias-primas como a madeira, o metal e as folhas de flandres, imprime em suas obras os sentidos de luta, guerra e escravidão, principais temas de sua produção artística.
Representante da arte popular com extensa produção, tem trabalho experimental tanto na forma quanto nos materiais utilizados, explorando diferentes matérias-primas. Suas obras trazem temáticas como a escravidão e suas lutas e a valorização do trabalho de artesãos e da arte popular no país.
Pouco se sabe sobre a infância e adolescência de Nhô Caboclo. É provável que tenha nascido na aldeia indígena Fulni-ô, no município de Águas Belas, zona agreste de Pernambuco. Descendente direto de índios, define-se como um caboclinho, sem acrescentar maiores detalhes. “Não conheci ninguém, nasci só”, diz. Criado no campo, próximo à cidade de Garanhuns, esculpe desde pequeno, dando forma ao barro e explorando materiais inusitados, como a barba-de-bode e a mandioca linheira. Exerce diferentes ofícios, como carpinteiro e sapateiro. Na juventude, trabalha com Mestre Vitalino (1909-1963), mestre maior dos bonecos de Caruaru. Abandona a argila, material que considera “morto”, incapaz de dar às peças o movimento que almeja. As experiências com a talha tampouco lhe agradaram. O objetivo de criar uma obra que “bulisse, peça valente, peça braba”1 ganha corpo quando ele chega ao Recife e conquista, pouco a pouco, lugar de destaque entre os artesãos populares da capital pernambucana.
No início, instala-se pelas ruas da cidade e vai atendendo a clientela local. Nhô Caboclo faz declarações inusitadas que mesclam sabedoria, uma fantasiosa construção mítica e hábitos exóticos largamente apontados pela imprensa. Entre elas, passar longas temporadas sem tomar banho, dormir sentado numa espreguiçadeira, beber em largas quantidades, inclusive gasolina. Com isso, alimenta a criação de um personagem extravagante, genial e lunático. Diz, por exemplo, ter superado Matusalém em idade e ter por volta de 360 anos.
Sua obra é ampla, experimental, produzida de forma intermitente. Ao falecer, em 1976, há fila de espera por suas obras. Tem horror de quem pechincha e recusa-se a fazer arte sacra, pois julga que apenas os crentes podem produzi-la. Com olhar agudo, percebe sutilezas como o colonialismo na arte e o embate entre o moderno e o popular: “Estrangeiro é que dá valor a essas. Ele traz as peças modernas de lá pros brasileiros, que gostam muito só porque é de lá, mas os estrangeiros gostam de peça matuta, que tem história”2.
Seus trabalhos mais conhecidos são produzidos em madeira, metal e folhas de flandres, mas absorve outros elementos como penas de pássaros, com as quais adorna as cabeças e armas dos guerreiros. O movimento das peças – inspirado por sonhos e pelo cinema – é obtido por meio do uso de roldanas e hélices, construídas com materiais reaproveitados como fundos de latas. Nhô Caboclo também fabrica seus próprios instrumentos, adapta facas e armações velhas de guarda-chuvas para construir suas obras. “Não gosto de coisa de loja. Gosto de trabalhar peça para museu: museu de matuto”.
Seu trabalho tem vários desdobramentos. “O Toré, o Racho, a Balsa – nomes que o artista dá a algumas de suas peças retratam um complexo riquíssimo de criatividade, de harmonia, equilíbrio, movimento”, sintetiza Silvia Martins em artigo publicado no Diário de Pernambuco3. Cada um desses nomes refere-se a uma invenção ou tema explorado com frequência por ele. Toré é uma passeata de caboclo no meio da mata, Sinaleiro representa a briga de um valentão, Equilibrista é “um velho caduco colocado numa árvore pelos filhos até morrer de inanição” e Racho, talvez uma de suas invenções mais conhecidas, é um trabalho em madeira que difere da talha (que para ele não passa de um “desenho em corte”) ao distribuir harmoniosamente bonecos e pássaros em uma estrutura vazada. Suas cores são sempre o vermelho e o preto, e seus temas de interesse, as lutas e a escravidão. “Gosto de fazer peça de penas e guerras. É muita luta e o derradeiro a ficar vivo sou eu mesmo”4.
Em texto de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) sobre o livro Reinado da Lua, cujo título provém de uma frase de Nhô Caboclo5, o poeta sintetiza a força interior do trabalho de artistas como ele, cuja arte provém de “engenho e força, emergindo das raízes mais fundas do homem não letrado que estuda as leis e as graças da natureza”6. Ou, como dizem as autoras do livro, Nhô Caboclo torna-se “um árbitro quase absoluto de seus próprios costumes, de suas resoluções, escapando a qualquer possibilidade de aprisionamento à norma"7. Segundo as autoras, o artista procura desarticular o mundo em redor, inventando alternativas e desconstruindo o viver cotidiano, recorrendo à ironia e ao humor.
Notas
1. FROTA, Lélia Coelho. Pequeno dicionário do povo brasileiro, século XX. São Paulo: Aeroplano, 2005.
2. COIMBRA, Silvia Rodrigues; ALBUQUERQUE, Flávia Martins; DUARTE, Maria Letícia. O reinado da Lua: Escultores populares do Nordeste. 4. ed., Recife: Caleidoscópio, 2010, p. 294.
3. MARTINS, Silvia. Notas sobre alguns artistas populares do Nordeste. Diário de Pernambuco, Recife, 28 nov. 1974.
4. COIMBRA, op. cit., p. 294
5. “Disso você não entende não, isso é coisa do reinado da lua”. In: COIMBRA, op. cit., p. 9.
6. ANDRADE, Carlos Drummond de. De sonhos e livros. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 nov. 1980. Caderno B, p. 5. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&pasta=ano%20198&pesq=edicao%2000224. Acesso em: 25 mar. 2018.
7. COIMBRA, op. cit., p. 295.
Exposições 9
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22/5/1992 - 18/10/1992
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3/12/1995 - 15/1/1994
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21/12/1996 - 5/2/1995
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6/7/2002 - 25/8/2002
Fontes de pesquisa 11
- ANDRADE, Carlos Drummond de. De sonhos e livros. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ed. 00224, 18 nov. 1980. Caderno B, p. 5. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspxbib=030015_10&pasta=ano%20198&pesq=edicao%2000224. Acesso em: 25 mar. 2018.
- ARTE Popular do Brasil. Disponível em: http://artepopularbrasil.blogspot.com.br/2016/01/nho-caboclo.html. Acesso em: 19 set. 2019.
- COIMBRA, Silvia Rodrigues; ALBUQUERQUE, Flávia Martins; DUARTE, Maria Letícia. O reinado da Lua: Escultores populares do Nordeste. 4. ed., Recife: Caleidoscópio, 2010.
- DRÄNGER, Carlos (coord.). Pop Brasil: arte popular e o popular na arte. Curadoria Paulo Klein; tradução João Moris, Beatriz Karan Guimarães, Maurício Nogueira Silva. São Paulo: CCBB, 2002. SPccbb 2002/pb
- FROTA, Lélia Coelho. Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, século XX. Versão em inglês Elvyn Laura Marshall. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005.
- GALERIA ESTAÇÃO. Nhô Caboclo. Disponível em: http://www.galeriaestacao.com.br/pt-br/artista/86/nho-caboclo. Acesso em: 18 jan. 2021.
- GALERIA Estação, São Paulo. Disponível em: http://www.galeriaestacao.com.br/artista/86. Acesso em: 19 set. 2019.
- MARTINS, Silvia. Notas sobre alguns artistas populares do Nordeste. Diário de Pernambuco, Recife, 28 nov. 1974.
- MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO, 2000, SÃO PAULO, SP. Arte Popular. Curadoria Emanoel Araújo, Frederico Pernambucano de Mello; tradução Grant Ellis, Izabel Murat Burbridge, John Norman, Paulo Henriques Britto. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo : Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. 745.50981 M9161a
- MUSEU Afro Brasil, São Paulo. Disponível em: http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/indice-biografico/lista-de-biografias/biografia/2016/10/13/nhô-caboclo-(manoel-fontoura). Acesso em: 29 mar. 2018.
- MUSEU Casa do Pontal, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.museucasadopontal.com.br/pt-br/nhô-caboclo. Acesso em: 19 set. 2019.
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NHÔ Caboclo.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
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Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7