Vincent Carelli
Texto
Vincent Carelli (Paris, França, 1953). Indigenista, diretor de cinema. Destaca-se pelo trabalho em contato direto com povos indígenas na luta pela emancipação, afirmação das identidades culturais e reconhecimento do direito à terra de pelo menos sessenta etnias. É um dos pioneiros na formação audiovisual como instrumento de luta política de cineastas indígenas e na visibilização de suas culturas na sociedade nacional.
Filho de pai brasileiro e mãe francesa, sua família se estabelece em São Paulo quando tem cinco anos de idade. Aos 16 anos, graças a um vizinho missionário indigenista, faz seu primeiro contato com índios Xikrin, no Pará. Cursa Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) por um ano, mas abandona o curso em 1973 para retornar à aldeia Xikrin. Lá, é adotado pela família de Akruantury, acontecimento raro entre indigenistas.
Durante a ditadura militar (1964-1985)1 trabalha por dois anos na Fundação Nacional do Índio (Funai) e depara com a intervenção autoritária dos militares: pouco investimento, pouca autonomia e total tutela dos indígenas. Em 1979, dedica-se ao projeto que rejeita as políticas indigenistas oficiais e funda, ao lado de antropólogos e indigenistas, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI).
A organização trabalha pela autodeterminação dos povos indígenas, ajudando-os a conquistar autonomia e independência do Estado nas decisões que os afetam. Para isso, o CTI realiza ações e projetos voltados à valorização das identidades culturais dos indígenas e à proteção ambiental das suas terras originárias.
Em 1987, cria, ao lado de sua esposa, a antropóloga Virgínia Valadão (1952-1998), o projeto Vídeo nas Aldeias (VNA), ainda no CTI. Em 2000, o projeto se torna uma organização não governamental (ONG) e atua no registro em vídeo de tradições das culturas indígenas amazônicas. O primeiro grupo com o qual trabalha é o povo Nhambikwara, no Mato Grosso e em Rondônia.
Diante da curiosidade dos indígenas pelas imagens, o VNA se torna também uma escola de cinema indígena. Reivindicada pelos próprios indígenas, a câmera troca de lado e Carelli passa a formar cineastas indígenas em oficinas que lhes permitem realizar o que define como autoetnografia.
De tradição oral, os índios veem no vídeo um meio atraente para o processo de reflexão sobre si mesmos, como objetos e sujeitos dessa reflexão. Com a câmera na mão e ideias na cabeça, esses cineastas se apropriam das imagens de suas culturas e se negam a continuar como “alvo de um safári fotográfico”, segundo o Xavante Hiparidi D. Top’Tiro.
Por meio do vídeo, os indígenas descobrem a importância da imagem para preservar suas memórias materiais e imateriais e se tornam mediadores do processo de comunicação entre diferentes aldeias, gerações, povos indígenas (no Brasil e no exterior) e entre líderes e suas comunidades. É ainda recurso valioso no registro de reuniões com órgãos do governo, o que lhes possibilita cobrar ações essenciais à luta política dos povos indígenas.
Aos 36 anos, começa a produzir documentários que alcançam repercussão nacional e internacional. Com o processo de formação de cineastas indígenas, sua relação com o cinema se aprofunda. Do uso inicial da fotografia como meio de registro e engajamento, ele passa a filmar as transformações das sociedades indígenas no contato com a sociedade nacional.
Entre 1986 e 2006, em parceria com o indigenista Marcelo Santos, realiza uma série de filmagens para obter provas que convençam a Justiça da existência de grupos indígenas isolados na região, sobreviventes de massacre perpetrado por fazendeiros. Essas provas são decisivas para garantir legalmente a permanência dos índios em suas terras.
Seu primeiro longa-metragem Corumbiara (2009) conta a história desse massacre ocorrido em 1985 na Gleba Corumbiara, em Rondônia. Ao longo de vinte anos, o diretor realiza um filme-processo no qual passa da busca de indícios da presença de indígenas sobreviventes à testemunha das consequências destrutivas do massacre.
Como participante da história de resistência dos indígenas aos fazendeiros, constata também a resistência deles ao próprio filme e a seus realizadores. As filmagens levantam questões éticas relativas ao próprio ato de filmar e revelam o entrelaçamento entre o filmado e o vivido pelo cineasta. Cada tentativa frustrada de aproximação questiona o próprio projeto.
Seu encontro surpreendente com o “índio do buraco”, único sobrevivente de etnia desconhecida, ocorre em 1998. O indígena isolado recusa o contato mesmo com seus parentes Kanoê e Akuntsu. Carelli faz um fugaz registro do “índio do buraco”, único vestígio de sua existência.
Em 2016, realiza o longa Martírio, codirigido pelo fotógrafo Ernesto de Carvalho (1981) e pela montadora Tatiana Almeida. O filme retrata o genocídio contemporâneo no processo de expropriação dos Guarani Kaiowá de seus territórios. Martírio assume a perspectiva da resistência dos indígenas vencidos, fundada na força espiritual que emana da sacralização da natureza, para contar a história invisível e perversa da relação do Estado com os indígenas, em um processo colonial de dizimação ainda em curso.
Na trajetória como indigenista e cineasta, Vincent Carelli produz imagens e reflexões que rompem a invisibilidade a que são relegadas as culturas e as lutas políticas dos povos indígenas, em particular na Amazônia. Em cada documentário que realiza, o que se expõe e se combate é o genocídio continuado dos indígenas brasileiros ao longo de mais de cinco séculos.
Notas
1. Também denominada de ditadura civil-militar por parte da historiografia com o objetivo de enfatizar a participação e apoio de setores da sociedade civil, como o empresariado e parte da imprensa, no golpe de 1964 e no regime que se instaura até o ano de 1985.
Exposições 10
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11/1979 - 11/1979
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30/11/1983 - 16/1/1982
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9/5/1995 - 9/6/1995
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9/4/1998 - 20/5/1998
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21/9/2001 - 11/11/2001
Fontes de pesquisa 16
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VINCENT Carelli.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa202595/vincent-carelli. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7