Mário Ficarelli
Texto
Biografia
Mário Ficarelli (São Paulo, São Paulo, 1935 - idem 2014). Compositor e educador. Oriundo de família humilde, inicia seus estudos de piano aos 16 anos, com Maria de Freitas Moraes, e de composição, de forma autodidata, ouvindo repertórios pela rádio e comprando partituras com o dinheiro de seu trabalho como pintor de rodapé e datilógrafo, entre outros. De 1958 a 1961, trabalhando na secretaria da Academia Paulista de Música, tem a oportunidade de seguir cursos de professores como Menininha Lobo, Jaime Ingran, Fritz Jank e Guerra-Peixe (1914- 1993), e acessar a biblioteca do instituto. Entre 1960 e 1964, tem aulas de piano com Alice Philips e conhece George Olivier Toni (1926), com quem estuda composição entre 1969 e 1971.
Em 1970, é finalista do 1° Festival Interamericano de Música, com a obra Cinco Retratos de um Tema. Recebe, em 1974, o prêmio do Concurso Nacional de Composições Corais de Belo Horizonte, promovido pelo Madrigal Renascentista, por Sapo Jururu (para canto e capela), e também o prêmio do Concurso de Composição Goethe, de Berlim, por Novelo (para quinteto de sopros). É premiado, em 1975, pela Tribuna Internacional de Compositores de Paris por Ensaio 72, estreada no Festival d'Automne, no mesmo ano. Em 1977, ensina composição e disciplinas correlatas na Escola Livre de Música e Artes das Faculdades Integradas Alcântara Machado, em São Paulo, onde trabalha até 1983. Recebe o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) em 1982, 1995 e 1999. Integra o corpo docente da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), em 1981, atuando como chefe do Departamento de Música de 1996 a 1999. Em 1995, obtém, nessa universidade, o título de doutor e faz o concurso de livre-docência sobre as sete sinfonias do compositor finlandês Jean Sibelius.
Recebe várias homenagens, realizadas, entre outras, pelo Museu da Imagem e do Som (MIS), em 1989, Theatro Municipal de São Paulo, Centro Cultural São Paulo, em 2005, e Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, em 2010. Em 2004, o selo Lami lança um CD dedicado ao compositor com três peças para quintetos, com participação de seus filhos André (trompa) e Alexandre Ficarelli (oboé). Seu catálogo conta com cerca de 150 obras escritas para diversas formações instrumentais, figurando, entre outras, três sinfonias, concertos, um oratório, uma missa e uma ópera. Seus trabalhos são editados no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos e gravados por intérpretes como José Eduardo Martins, Quarteto de Cordas de Brasília e Trio Puelli. É membro da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, desde 1975, da Academia Brasileira de Música, desde 1994 (tendo participado da diretoria de ambas), e da Suisa (Suíça), desde 1992. Em 2001, torna-se compositor associado da Arizona State University.
Análise
A obra de Mário Ficarelli tem seus alicerces na harmonia e no contraponto, nas técnicas de orquestração e nas formas tradicionais (como a sonata, o scherzo ou a passacaglia)1, concatenados pelo emprego de temas, pontes, cadências e outros elementos formais reminiscentes da música clássica e romântica ocidental. A apropriação desses elementos, no entanto, se dá de maneira bastante livre. Segundo as palavras do próprio compositor: "As formas musicais são organismos vivos e, como tais, em constante mutação. Os princípios formais, estes, sim, são padrões. Mas são padrões apenas no sentido arquitetural intrínseco. Na aplicação de uma determinada forma por um compositor, as possibilidades de adaptação desses princípios formais são amplas"2.
Esteticamente, pode-se dizer que sua concepção da música e, consequentemente, sua escrita composicional são o reflexo direto de seus princípios éticos, morais e políticos. A figura do compositor possui, para Ficarelli, um papel social: proporcionar uma reflexão sobre a condição da vida humana (presente e futura). Em termos musicais, essa proposição materializa-se em simbolismos que, inseridos numa linguagem puramente musical, tentam suscitar uma sensação psicológica interior de uma problemática extramusical. Exemplos disso podem ser encontrados em obras como Transfigurationis (1981), que trata da fase crítica enfrentada pela sociedade no planeta Terra a fim de que seja atingido um novo patamar de evolução espiritual, ou Sinfonia nº 2 - Mhatuhabh (1991), que tem como tema a teorização da origem cósmica do homem pela destruição do planeta Mhatuhabh pelos seus habitantes e a consequente mudança desses para o Novo Mundo - o planeta Terra. De modo prático, em Transfigurationis, por exemplo, para criar o motivo de base que norteia toda a composição (também empregado em Mhatuhabh), Ficarelli baseia-se nos estudos de Kepler publicados no livro Harmonices Mundi, em que o cientista afirma que o universo está submetido a leis harmônicas e define, para o planeta Terra, o intervalo de segunda menor. Assim, para indicar a decadência da sociedade, o compositor lança mão, na primeira parte da peça, de um motivo de segunda menor descendente (fá-mi), e, na segunda, um motivo de segunda menor ascendente (mi-fá) para simbolizar a transformação positiva da humanidade e sua ascensão em direção a uma espiritualidade mais desenvolvida. Outros símbolos podem ser ainda identificados nessa mesma peça, como a utilização da dissonância significando discordância, tensão, desarmonia, e a do chicote como símbolo de prepotência e da marca do duro trabalho submetido ao escravismo imoral e capitalista do homem sobre o homem. Esses simbolismos vão se alastrar, de modo geral, por uma grande parte de sua obra.
Historicamente, Ficarelli insere-se no Brasil como uma figura que, atendo-se aos preceitos musicais europeus, prefere não se afiliar a nenhuma das estéticas principais: nem à música nacionalista nem à de vanguarda, pendendo livremente entre uma e outra fruindo de elementos de ambas a fim de criar a própria linguagem. Isso porque, para o compositor, o fato de ser brasileiro estabelece automaticamente certa flexibilidade que permite a convivência com opostos em prol da liberdade individual3. Um exemplo claro disso pode ser encontrado no primeiro tema da peça Concertante para Saxofone Alto (1999), em que a exposição de nove alturas diferentes sem repetição concatenadas em intervalos melódicos de terça menor finalizando na tonalidade de dó menor testemunha a utilização de princípios seriais (vanguardistas) de maneira completamente não ortodoxa, ligados nesse contexto à tradição tonal. Por essas razões, Ficarelli é encarado como um compositor solitário ou singular, que privilegia a sua própria liberdade de escolha e de expressão.
Notas
1 Em música, forma musical designa tanto uma estrutura quanto uma tradição de escrita que permite situar a obra musical em um contexto histórico e geográfico preciso. Na tradição erudita europeia, algumas formas musicais destacam-se, entre elas rondó, canção, sonata, tema e variações, fuga, concerto, sinfonia, prelúdio, fantasia, scherzo, passacaglia.
2 RYDLEWSKI, Paulo Eduardo de Mello. Uma abordagem do processo composicional de Mário Ficarelli a partir da análise de Concertante para Sax Alto e Orquestra. p. 17.
3 Ibidem., p. 10.
Links relacionados 1
Fontes de pesquisa 16
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- RYDLEWSKI, Paulo Eduardo de Mello. Uma abordagem do processo composicional de Mario Ficarelli a partir da análise de "Concertante para Sax alto e Orquestra". 2007. Dissertação (Mestrado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007.
Como citar
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MÁRIO Ficarelli.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa106111/mario-ficarelli. Acesso em: 06 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7