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Enciclopédia Itaú Cultural
Música

​​Africadeus

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 18.10.2024
1973
​​Africadeus é o primeiro álbum solo do percussionista pernambucano Naná Vasconcelos (1944-2016) e obra seminal para o reconhecimento do artista como um dos mais influentes músicos brasileiros. Lançado em 1973 pelo selo francês Saravah, o disco apresenta três faixas em que Naná explora as possibilidades do berimbau e desvenda novos caminhos para...

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​​Africadeus é o primeiro álbum solo do percussionista pernambucano Naná Vasconcelos (1944-2016) e obra seminal para o reconhecimento do artista como um dos mais influentes músicos brasileiros. Lançado em 1973 pelo selo francês Saravah, o disco apresenta três faixas em que Naná explora as possibilidades do berimbau e desvenda novos caminhos para o instrumento até então associado exclusivamente aos toques de capoeira. Influenciado pelo experimentalismo do estadunidense Jimi Hendrix (1942-1970) diante da guitarra elétrica, o músico se dedica a manipular o berimbau para além das batidas convencionais.
 
O berimbau tem origem em Angola e chega ao Brasil trazido pelos escravizados. Seu som conduz os movimentos da luta da capoeira. O instrumento é constituído por uma vara de madeira em forma de arco, que tem um arame preso e tensionado nas duas extremidades do bastão. Na base, fica uma caixa de ressonância conhecida como cabaça que o músico usa para pressionar contra o ventre e, assim, mudar o timbre e a vibração das notas emitidas. Com uma vareta em uma das mãos, o instrumentista percute o arame; com uma moeda na outra, ele pressiona o fio e, assim, manipula a frequência das notas musicais; um caxixi, espécie de chocalho, preso aos dedos da mesma mão que segura a moeda ajuda na marcação do ritmo.

Naná aprende de forma autodidata essa linguagem aplicada na capoeira em 1967 para tocá-lo no musical “Memória de Dois Cantadores”, no Recife, com os músicos Edy Star (1938) e Teca Calazans (1940).

A primeira faixa do álbum é a instrumental “Africadeus (Concerto Pra Mãe Bio)”, um épico de dezenove minutos e meio que ocupa todo o lado A do LP. Fica logo evidente a dedicação do percussionista em encontrar diferentes sons a partir do berimbau (único instrumento tocado na faixa) e desafiar o ouvinte com notável inventividade tanto no jeito de tocar como nas técnicas de gravação usadas. É perceptível, por exemplo, a proposta de trabalhar com a espacialidade da sonoridade, já que o tema é gravado com os canais de áudio no modo estéreo; assim, a música oscila para momentos em que toca nas duas caixas de som com variações em que reverbera em apenas uma delas ou se movimenta de uma para outra, o que causa um efeito interessante de movimentação das ondas sonoras.
 
No que diz respeito ao jeito de manipular o instrumento, são perceptíveis algumas manobras que o músico usa para encontrar diferentes resultados: o gesto constante de pressionar a cabaça contra a barriga para abafar o volume e o timbre do som; o uso da vareta na parte abaixo da corda que prende a cabaça, onde se alcança notas mais agudas; a apropriação do som da vareta percutindo contra o arco de madeira e a cabaça; e o uso constante da moeda em fricção contra o arame, o que provoca uma dinâmica de tensão e relaxamento ao longo de toda a música.

Esta composição é gravada anteriormente, com o título abreviado para “Concerto Pra Mãe Bio”, no álbum El Increible Nana Con Augustin Pereyra Lucena, lançado exclusivamente na Argentina, em 1971, em parceria com o violonista Augustin Pereyra Lucena (1948-2019).
 
A partir do lado B do álbum, Naná introduz a própria voz na estrutura instrumental e aí se estabelece uma combinação mais contrastante entre os elementos rítmicos e as linhas melódicas. O jeito do músico cantar, no entanto, não prioriza a qualidade vocal (nem em extensão de alcance de notas, tampouco na lapidação de um timbre convencionalmente agradável): Naná canta sem esconder os próprios limites e privilegia justamente esse contraste de uma voz rústica que entoa melodias de trabalho ou da cultura popular com a expansão das possibilidades percussivas do berimbau.
 
“Aboios” traz uma compilação de temas populares cantados por vaqueiros do sertão nordestino para conduzir as boiadas. Os aboios se caracterizam pelo canto lento e melancólico que acompanha o movimento cadenciado dos bois. Naná traz versos como “não me chame de boiadeiro / que eu não sou boiadeiro, não / eu sou um pobre vaqueiro / boiadeiro é o meu patrão” e surge, então, um discurso de crítica social que reflete sobre a desigualdade do Nordeste. Com toda estrutura musical sustentada por essa rusticidade de uma voz sem requinte e um instrumento considerado limitado, o artista emula a condição do trabalhador popular e demonstra que, na arte ou no trabalho cotidiano, o cidadão comum é capaz de alcançar extrema inventividade em contextos de dificuldade.
 
“Seleção de Folclore” traz temas recolhidos da cultura popular de várias regiões do Brasil, com destaque para a ciranda “Quem Me Deu Foi Lia”, marcante no repertório da cantora e compositora pernambucana Lia de Itamaracá (1944).

Embora cultuado, as edições comerciais de Africadeus são lançadas exclusivamente fora do Brasil: a original é lançada na França; em 2017, é reeditado nos Estados Unidos pelo selo Harmonipan Editions e, em 2023, uma nova reedição é lançada na Alemanha pelo selo Altercat. Em 2014, é lançado no Brasil no formato CD, mas em edição limitada e distribuição gratuita.
 
É legítimo afirmar que Naná reinventa o berimbau, mas ele diz que é o instrumento que o reinventa enquanto músico. A partir de Africadeus, o percussionista dedica toda uma carreira à exploração das possibilidades que o berimbau oferece e tal empenho rende uma série de homenagens. Naná Vasconcelos torna-se dos músicos brasileiros com maior reconhecimento mundial e é eleito por oito vezes como melhor percussionista do mundo pela revista estadunidense Downbeat, especializada em jazz. Africadeus é a obra que coloca Naná Vasconcelos definitivamente no mapa da música mundial e uma bússola para os muitos passos seguintes na carreira do músico.

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