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Enciclopédia Itaú Cultural
Literatura

O Exército de Um Homem Só

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 20.03.2024
1973
O Exército de Um Homem Só, segundo romance do escritor Moacyr Scliar (1937-2011), é lançado em 1973, período de endurecimento do regime militar no Brasil. A repressão torna-se mais violenta a partir de dezembro de 1968, com o decreto do Ato Institucional n. 5, e começa a mudar de configuração em 1978, com a revogação dos atos institucionais e co...

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O Exército de Um Homem Só, segundo romance do escritor Moacyr Scliar (1937-2011), é lançado em 1973, período de endurecimento do regime militar no Brasil. A repressão torna-se mais violenta a partir de dezembro de 1968, com o decreto do Ato Institucional n. 5, e começa a mudar de configuração em 1978, com a revogação dos atos institucionais e complementares.

Apesar do momento histórico, é curioso que o romance não faça parte da lista negra da ditadura, pois nele há menção a figuras importantes do pensamento de esquerda, como Karl Marx (1818-1883), Vladimir Lenin (1870-1924) e Rosa Luxemburgo (1871-1919). No entanto, tais figuras não se sobrepõem ao enredo, centrado na trajetória de Mayer Guinzburg, o Capitão Birobidjan, filho de judeus russos que emigram para o Brasil em 1916.

Em sua organização formal, a narrativa avança e recua no tempo. O romance apresenta cada capítulo tendo como título um ano. A história inicia-se em 1970, em seguida, passa aos anos de 1928 e 1916. Segue para 1919 e 1929 e, em 1930, flui em ordem mais ou menos cronológica até 1970. A primeira cena mostra o momento final de Guinzburg. A narrativa funda-se, portanto, em uma circularidade, na qual a retomada da leitura é quase inevitável ao final do livro. 

Mayer não se conforma com o fato de a família ter abandonado a terra natal às vésperas da Revolução Russa (1917) e reproduz os ideias revolucionários no Beco do Salso, arredores de Porto Alegre, onde pretende inaugurar uma nova Birobidjan. Originariamente, trata-se de um território fundado pelo governo soviético em 1928, na Sibéria Ocidental, para acolher a colônia judaica da Rússia. Segundo Regina Zilberman (1948), Mayer pretende fundar uma “comunidade  onde poderá dar vazão a seus princípios políticos sem ter de renunciar à etnia e à religião judaica”1.

Ao longo da narrativa, são três as tentativas para a criação desse novo território. A primeira, em 1929, quando Mayer e os amigos José Goldman, Berta Kornfeld, Marc Friedmann e Léia Kirschblum habitam, por um dia, a casa abandonada da família de Friedmann, no Beco do Salso. A segunda, em 1942, quando Mayer passa a viver sozinho na mesma casa abandonada, deixando para trás mulher e filho. A terceira, em 1966, quando seu filho o interna na mesma casa, transformada em asilo.

A estrutura da narrativa contrapõe o mundo idealizado pelo protagonista àquele no qual realmente vive e que pretende transformar. O mundo idealizado está presente, por exemplo, na sociedade que Mayer imagina viver em 1942, no Beco do Salso. Lá, os animais que vivem no terreno ao redor da casa – um porco, uma cabra e uma galinha – são tratados como companheiros de luta. Também se verifica na relação que mantém com seres imaginários: “Embora [Mayer] sempre os visse como ‘homenzinhos’, notava que havia também pequenas mulheres. O número era muito menor do que ele pensava: uma dúzia, no máximo”2. O mundo real, entretanto, sempre bate à porta da consciência de Mayer para mostrar os limites daquilo que ele supõe viver isolado de todos, ou mesmo com a família, seguindo uma rotina que preferiria ver alterada. 

Moacyr Scliar, tem ascendência judaica e é membro de uma família russa que também emigra para o Brasil. Some-se a isso o contexto histórico no qual o romance é concebido e percebe-se que o embate entre o mundo real e o idealizado pelo protagonista permite que o autor manifeste um pensamento proibido em tempos de ditadura e aborde a questão do destino do povo judeu.

A frase de abertura do romance traz uma imagem que percorre toda a narrativa, mudando de forma, mas sem perder a essência. É uma síntese do movimento interno do protagonista: “Neste mar o Capitão Birobidjan flutua imóvel, meio afogado”. Em outro momento: “De manhã ele abria a loja muito cedo; às vezes, a neblina que vinha da Redenção invadia o estabelecimento e, na semiobscuridade, Mayer tinha a impressão de estar meio afogado, flutuando num mar”. E ainda: “O tempo fluía. O tempo, como um rio, fluía. Aos domingos pela manhã Mayer Guinzburg descia lentamente a Rua Felipe Camarão como um tronco levado pela correnteza. Este rio, Felipe Camarão, desaguava no mar – o Bom Fim. No mar Mayer Guinzburg flutuava meio afogado”. Nesse mar, permeado de lembranças e de desejos ainda por realizar, em que se misturam realidade e fantasia, Mayer perde-se muitas vezes e sente-se mais próximo da Nova Birobidjan. 

Segundo o crítico Flávio Loureiro Chaves (1944) comenta que Moacyr Scliar “nunca dispensa o sonho, a alucinação ou […] o gesto insólito que invariavelmente opera a fratura da realidade”3. Ao tratar de O Exército de um Homem Só, o pesquisador Jean Pierre Chauvin (1973), por sua vez, pondera que “Mayer e a Nova Birobidjan são uma coisa só: o louco e a terra da fantasia; o exército sem soldados e o quartel sem defesa”4. A fantasia e a realidade colocam-se quase ao mesmo tempo na narrativa, promovendo um diálogo em que estão dramatizados (para sofrimento do personagem) o alcance e os limites de um olhar utópico. 

Scliar mostra a realidade pela representação de um homem aparentemente louco, pelas ações frustradas de um Dom Quixote sem Sancho Pança. O Exército de um Homem Só é a abertura – e talvez a porta de entrada mais adequada – para um mundo no qual o absurdo é mais revelador da realidade do que ela mesma.

Notas

1. ZILBERMAN, Regina. Capitão Birobidjan – um idealista para o século XXI. In: BERND, Zilá; ZILBERMAN, Regina (Orgs.). O Viajante Transcendental: leituras da obra de Moacyr Scliar. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2004, p. 71.

2. SCLIAR, Moacyr. O Exército de Um Homem. 3. ed. Porto Alegre: LP&M, 1983.

3. CHAVES, Flávio Loureiro. Scliar e a diáspora de todos nós. In: BERND,  Zilá; MOREIRA, Maria Eunice; MELLO, Ana Maria Lisboa de (Orgs.). Tributo a Moacyr Scliar. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2012, p. 175.

4. CHAUVIN, Jean Pierre. O regime da utopia em O exército de um homem só. Todas as Letras: Revista de Língua e Literatura, São Paulo, v. 9, n. 1, 2007, p. 122.

Fontes de pesquisa 4

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  • CHAUVIN, Jean Pierre. O regime da utopia em O exército de um homem só. Todas as Letras: Revista de Língua e Literatura, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 119-126, 2007.
  • CHAVES, Flávio Loureiro. Scliar e a diáspora de todos nós. In: BERND, Zilá; MOREIRA, Maria Eunice; MELLO, Ana Maria Lisboa de (Orgs.). Tributo a Moacyr Scliar. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2012, p. 169-178.
  • SCLIAR, Moacyr. O Exército de Um Homem Só. 3. ed. Porto Alegre: LP&M, 1983.
  • ZILBERMAN, Regina. Capitão Birobidjan – um idealista para o século XXI. In: ZILBERMAN, Regina; BERND, Zilá (Orgs.). O Viajante Transcendental: leituras da obra de Moacyr Scliar. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2004, p. 67-78.

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