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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

O Cangaceiro

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 17.05.2024
1953
O Cangaceiro (1953), escrito e dirigido por Lima Barreto (1906-1982), com diálogos criados por Rachel de Queiroz (1910-2003), é uma produção monumental da história da Produtora Vera Cruz. Realizada com orçamento milionário, tem início em 1952, e as externas são filmadas em Vargem Grande do Sul, interior de São Paulo, onde se pretende criar um am...

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O Cangaceiro (1953), escrito e dirigido por Lima Barreto (1906-1982), com diálogos criados por Rachel de Queiroz (1910-2003), é uma produção monumental da história da Produtora Vera Cruz. Realizada com orçamento milionário, tem início em 1952, e as externas são filmadas em Vargem Grande do Sul, interior de São Paulo, onde se pretende criar um ambiente semelhante ao sertão nordestino. O roteiro se inspira na lendária figura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, o maior dos cangaceiros brasileiros, morto e decapitado em 1938, após um cerco policial.

O Cangaceiro é o primeiro representante do nordestern, gênero que inscreve o cangaço em narrativas de aventura e basicamente transpõe para o Nordeste brasileiro os códigos ficcionais do western, aproximando inclusive alguns traços da caatinga nordestina aos atributos naturais – amplos espaços, paisagens rudes e quase desérticas – do Velho Oeste, horizonte histórico-geográfico do mito de expansão das fronteiras norte-americanas que forneceu a Hollywood o imaginário daquele que representa o gênero por excelência do cinema clássico americano entre as décadas de 1920 e 1960.

Teodoro [Alberto Ruschel (1918-1996)] e Capitão Galdino [Milton Ribeiro (1921-1972)] são os personagens principais. Duas sequências, situadas ainda no início, caracterizam de modo claro o grupo de cangaceiros liderado por Galdino. Primeiro, ele expulsa funcionários que trabalham na medição de terras para a futura construção de uma estrada de rodagem. Seu autoritarismo é temperado por sua rusticidade comportamental e sua falta de escolaridade, ambas já expostas em suas falas de apresentação. Depois, Galdino comanda um ataque gratuito à população indefesa de uma pequena cidade, permitindo ao filme caracterizar seu bando como ameaça social, horda primitiva que não respeita a lei e a propriedade. O ataque coloca em jogo as duas linhas narrativas principais do filme, que se desenvolverão em paralelo: a formação da Terceira Volante, que ficará no encalço dos cangaceiros, e o rapto de Olívia (Marisa Prado), a jovem professora da cidade, que dará origem à parte romântica do enredo. A outra personagem feminina importante é Maria Clódia [Vanja Orico (1921-2015)], mulher incorporada ao cangaço e, como fica insinuado num diálogo, tornada parceira sexual de todos os membros do bando, portanto personagem contrastante com a figura de mulher pura e pudica da professora. 

Enquanto o conflito volante-cangaço representa a polaridade ordem-desordem, engendrando ações (violência grupal, emboscadas, tiroteios) de alto potencial de espetáculo, o envolvimento de Olívia com Teodoro motiva uma trama romanesca pautada em modelos melodramáticos já consagrados e normatizados pelo cinema clássico-narrativo. Apaixonado por Olívia, Teodoro foge com ela.  Ele se diferencia dos demais cangaceiros por sua educação e polidez, assim como por seu físico (alto, branco e de olhos claros). Numa pausa noturna durante a fuga, ele explica a Olívia sua origem de sertanejo honesto. Teodoro, destacado dos demais cangaceiros “pela fisionomia e pela linguagem, pelo temperamento e pelos hábitos”1, não partilha a índole criminal do bando.

Com capitão Galdino sedento por se vingar de Teodoro, que considera desertor e traidor, consolida-se, no seio do próprio cangaço, a oposição que move o filme: entre o educado e o selvagem, o moral e o imoral, os sentimentos elevados e os baixos instintos. “Nesse embate, há um solo comum que une os adversários: ambos são fruto da terra”2. Teodoro revela a Olívia sua ligação visceral com a mãe-terra: “Parece até que tenho um bocado desta terra desmanchada no sangue”. Depois aponta a sobreposição das duas forças que o empurram ao destino trágico: “Mulher e terra são uma coisa só; a gente precisa das duas pra ser feliz”. Como a encenação do diálogo permite constatar, princípios de equilíbrio e unidade dramática norteiam a mise en scène de Lima Barreto, conduzida nos moldes da decupagem clássica. O estilo posado e a aura de grande espetáculo predominam. 

Em O Cangaceiro, o sertão é um mundo abstraído da história, visão romântica de uma terra selvagem regulada segundo leis da natureza, que o processo civilizatório teria eliminado. As lendas e mitos populares sobre o cangaceiro fornecem a matéria ficcional do filme. O texto inicial diz: “Época imprecisa: quando ainda havia cangaceiros”. Essa cartela de abertura não só situa num passado remoto o universo do cangaço como ainda instaura uma distância entre o narrador e seu objeto. Apesar da construção de uma imagem romantizada do cangaço e de sua celebração como componente importante do imaginário popular nacional, o discurso do filme faz reservas à conduta dos bandidos sociais e condena moralmente sua violência.

Uma cena ilustrativa de tudo que foi dito acima é aquela em que Galdino tortura um homem de seu bando, por este ter acobertado a fuga de Teodoro e não querer revelar o destino do fugitivo. Galdino amarra o homem a um cavalo que sai em disparada. Uma sucessão de breves planos dos rostos dos cangaceiros mostra-os acompanhando com o olhar a trajetória do cavalo. Em seguida, Galdino interroga de novo o homem, que continua sem dar o destino de Teodoro. A tortura é repetida, desta vez com o cavalo passando por dentro da parte mais acidentada da caatinga. Uma nova sucessão de planos curtos isola os rostos dos cangaceiros do resto do cenário. A violenta sequência termina com Galdino, enquadrado em um contra-plongé que torna sua figura ainda mais imponente e acentua o caráter impiedoso de sua conduta, se benzendo sobre o cadáver do homem. A rigidez da pose de Galdino, bem como a quase fixidez dos rostos nos já citados closes dos demais cangaceiros, dá à representação visual do cangaço um aspecto escultórico que casa com a vontade de mitologia expressa no filme. 

O Cangaceiro estreia em janeiro de 1953 e em três meses é visto por 600 mil pessoas, batendo recorde de bilheteria no cinema brasileiro. Ganha o prêmio de Melhor Filme de Aventura e Menção Honrosa pela música "Mulé Rendeira" no Festival de Cannes de 1953. É vendido para a Columbia Pictures pelo dobro de seu custo e exibido em inúmeros países, sendo o primeiro filme brasileiro a ter distribuição comercial no exterior. 

A fortuna crítica sobre O Cangaceiro é vastíssima, o que se explica pela enorme repercussão nacional e internacional que o filme obtém. O elogio mais comum é a exaltação da qualidade técnica e artística, como se lê no jornal O Globo, de 1953: “realização técnico-artística de primeira ordem e um espetáculo dramático de grande intensidade”. Mesmo críticas desfavoráveis fazem parenteses para elogiar a fotografia de Chick Fowle, a montagem de Oswald Hafenrichter ou a indumentária estilizada e o aproveitamento do folclore musical nordestino na trilha sonora.

Walter da Silveira escreve uma longa crítica para o Diário de Notícias do estado da Bahia, publicada em 3 de maio de 19533. Para ele, as incorreções históricas e geográficas não minimizam o filme como obra de arte bem realizada estilisticamente nem como expressão de um tema nacional e popular, mas contribuem para a “vacuidade sociológica da história”. Ele reprova também o lado romântico da narrativa, que transforma “numa vulgar história individual de dois personagens sem amplo interesse uma história rigorosamente coletiva, de largo painel de massas ”. O crítico teria preferido um filme menos brilhante esteticamente porém mais autêntico na visão do agreste brasileiro e da violência oriunda da injustiça social no campo.     

Por conta da exibição em Cannes, o crítico francês André Bazin escreve sobre O Cangaceiro: “Raramente vemos, no cinema, um sentido tão verdadeiro da violência, de uma poesia crua tomada emprestada às fontes da história e da raça”4.

Já Glauber Rocha (1939-1981) em Revisão crítica do cinema brasileiro, faz objeções severas ao aspecto fatalista do drama, à sua mistificação do cangaço, ao “pitoresco fácil”, ao “espírito melodramático”. O cotidiano do acampamento dos cangaceiros é narrado, segundo Glauber, “sem o mínimo senso crítico”, em função de um humor e de uma descrição de costumes enganosa. 

Notas

1 SILVEIRA, Walter da. Walter da Silveira: o eterno e o efêmero. Organização e notas José Umberto Dias. Salvador : Oiti Editora e Produções Culturais, 2006. p.292.
2 XAVIER, Ismail, Sertão Mar - Glauber Rocha e a estética da fome. 2.ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, p. 164.
3 Walter da Silveira, op. cit., pp. 289-93.
Le Parisien Liberé, 18 abr. 1953.

Fontes de pesquisa 4

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  • BARRETO, Lima, “História secreta d'O Cangaceiro e outras miudezas”. In Filme Cultura nº 11, novembro de 1968, pp. 50-53.
  • DIAS, José Umberto (org.), Walter da Silveira – O eterno e o efêmero, Salvador: Oiti Editora e Produções Culturais, 2006, pp. 289-293.
  • ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
  • XAVIER, Ismail, Sertão Mar - Glauber Rocha e a estética da fome, São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

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