Lira Paulistana
Texto
Análise
Lira Paulistana (1945), conjunto de poemas de Mário de Andrade (1893-1945) publicado no ano de sua morte, é considerado síntese da trajetória poética do autor. As 29 composições, de caráter político, apresentam um sujeito que reflete a respeito de si e do mundo, com base em imagens fornecidas pela vida na capital paulista, como revelam os versos: “A catedral de São Paulo / Por Deus! que nunca se acaba / – Como minha alma”.
Segundo Gilda de Mello e Souza (1919-2005), Lira Paulistana remete a Paulicéia Desvairada (1922), livro que inaugura a maturidade artística do autor e primeira obra a divulgar os pressupostos estéticos do modernismo brasileiro, em especial o uso do verso livre.
A década de 1920 abre caminhos renovadores para que artistas, influenciados pelas vanguardas artísticas europeias, encontrem uma forma adequada ao ritmo e às novidades da cidade em crescimento. É o que se vê nos versos de “Rua de São Bento”, poema de Paulicéia Desvairada:
Minha Loucura, acalma-te!
Veste o water-proof dos tambéns!
Nem chegarás tão cedo
à fábrica de tecidos dos teus êxtases;
telefone: Além, 3991...
Em Lira Paulistana, o poeta volta-se para o passado para compreender seu legado literário e encontrar na cidade de São Paulo um espelho para suas questões. Exemplo dessa identificação é o poema em que o eu lírico, antecipando sua morte, designa onde se devem enterrar partes de seu corpo:
Quando eu morrer [...]
Meus pés enterrem na rua Aurora
No Paiçandu deixem meu sexo
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam
Tratando da morte, tema recorrente no livro, esses versos parodiam composições do romantismo, como “Se eu Morresse Amanhã” ou “Lembrança de Morrer”, de Alvares de Azevedo (1831-1852).
Exemplo da tendência reflexiva que se projeta na cidade é “A Meditação sobre o Tietê”, único poema do livro a receber título. Caracterizado por João Luiz Lafetá (1946-1996) como “testamento poético de Mário de Andrade”, o poema vale-se da imagem do rio Tietê como símile da vida e da atividade artística e intelectual do poeta1.
O rio, inicialmente convite ao confronto com os próprios sentimentos, torna-se imagem do destino do poeta: “Meu rio, meu Tietê, onde me levas? [...] / Me induzindo com a tua insistência turrona paulista / Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!”, pergunta-se o sujeito. Os versos fazem referência ao fato de que o Tietê volta-se para o interior do país, em vez de correr para o oceano. Aos poucos, compõe-se a noção de que o ofício poético é contraponto à indiferença e à injustiça social: “[água] Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas / Para o peito dos sofrimentos dos homens”.
Segundo Lafetá, o tom amargurado de “A Meditação sobre o Tietê” é exemplo da negatividade e da desconfiança que o autor manifesta nas décadas de 1930 e 1940 e contrapõe-se à “consciência eufórica” dos anos 1920. Cristalização desse ponto de vista é a conferência “O Movimento Modernista”, proferida por Mário de Andrade em 1942, no Rio de Janeiro. Segundo o escritor, a pesquisa estética e a consciência nacional são conquistas do modernismo brasileiro, mas “a atualização da inteligência artística nacional” falha: “E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amilhoramento político-social do homem”.
A reflexão é autocrítica: se, na década de 1930, o autor hesita diante de uma arte meramente engajada, sem preocupação com o apuro formal, na década de 1940, o empenho do artista torna-se valor central para Mário de Andrade. Essa mudança de perspectiva manifesta-se nos poemas de Lira Paulistana. Entre os motivos, estão: a dificuldade de ver para além de preconceitos e ideologias, projetada na metáfora que faz da fina chuva paulistana “timbre triste de martírios” (“Garoa, sai dos meus olhos”); a recusa da poesia superficial, que não retrate “o mal das almas” (“A palavra se inutiliza em brisas calmas”); a exploração do trabalho, presente no poema narrativo dedicado à história de Pedro (“Agora eu quero cantar...”); e a riqueza injustamente conquistada (em “Moça linda bem tratada...”). Há, também, o desencanto provocado pela Segunda Guerra Mundial, presente no poema dirigido a um aviador brasileiro lutando no combate (“Em pleno olho sem pálpebras dás morte, / Armado de morte, cercado de morte, amante da morte”).
Problematizar a realidade social brasileira não implica abdicar da procura por uma linguagem capaz de lhe dar forma. O autor recorre, por exemplo, a recursos tradicionais, como a repetição, para cantar os problemas contemporâneos com simplicidade e despojamento. É o que ocorre no poema sobre um filme do cineasta estadunidense Cecil B. DeMille (1881-1959): o refrão “Rei dos Reis”, repete-se e assume sentido específico em cada estrofe.
Ao buscar a síntese entre pesquisa estética e interesse social, entre exterioridade e subjetividade, os poemas de Lira Paulistana mostram que Mário de Andrade sempre investiga a arte em geral e a poesia em particular. Se uma composição parece duvidar do valor mesmo da poesia – “Eu nem sei se vale a pena / Cantar São Paulo na lida” –, outra se afirma contra a brutalidade: “Abra-se boca e proclama / Em plena Praça da Sé, / O horror que o nazismo infame / É”. A despeito do desencanto com que o sujeito vê o mundo, o resultado é a necessidade de criação, como afirma o eu lírico no poema de abertura: “Minha viola quebrada, / Raiva, anseios, lutas, vida, / Miséria, tudo passou-se / Em São Paulo”.
Nota
1 O procedimento faz lembrar “Louvação da Tarde”, de Remate de Males (1930), em que um passeio de carro por uma rodovia do interior paulista torna-se tema e metáfora para o eu lírico refletir sobre a própria trajetória, como mostra Antonio Candido (1918) no ensaio “O Poeta Itinerante”.
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LIRA Paulistana.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra69853/lira-paulistana. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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