Ordenação

Tipo de Verbete

Filtros

Áreas de Expressão
Artes Visuais
Cinema
Dança
Literatura
Música
Teatro

Período

A Enciclopédia é o projeto mais antigo do Itaú Cultural. Ela nasce como um banco de dados sobre pintura brasileira, em 1987, e vem sendo construída por muitas mãos.

Se você deseja contribuir com sugestões ou tem dúvidas sobre a Enciclopédia, escreva para nós.

Caso tenha alguma dúvida, sugerimos que você dê uma olhada nas nossas Perguntas Frequentes, onde esclarecemos alguns questionamentos sobre nossa plataforma.

Enciclopédia Itaú Cultural
Literatura

Lira Paulistana

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 18.04.2022
1945
Lira Paulistana (1945), conjunto de poemas de Mário de Andrade (1893-1945) publicado no ano de sua morte, é considerado síntese da trajetória poética do autor. As 29 composições, de caráter político, apresentam um sujeito que reflete a respeito de si e do mundo, com base em imagens fornecidas pela vida na capital paulista, como revelam os versos...

Texto

Abrir módulo

Análise

Lira Paulistana (1945), conjunto de poemas de Mário de Andrade (1893-1945) publicado no ano de sua morte, é considerado síntese da trajetória poética do autor. As 29 composições, de caráter político, apresentam um sujeito que reflete a respeito de si e do mundo, com base em imagens fornecidas pela vida na capital paulista, como revelam os versos: “A catedral de São Paulo / Por Deus! que nunca se acaba / – Como minha alma”.

Segundo Gilda de Mello e Souza (1919-2005), Lira Paulistana remete a Paulicéia Desvairada (1922), livro que inaugura a maturidade artística do autor e primeira obra a divulgar os pressupostos estéticos do modernismo brasileiro, em especial o uso do verso livre.

A década de 1920 abre caminhos renovadores para que artistas, influenciados pelas vanguardas artísticas europeias, encontrem uma forma adequada ao ritmo e às novidades da cidade em crescimento. É o que se vê nos versos de “Rua de São Bento”, poema de Paulicéia Desvairada

Minha Loucura, acalma-te! 
Veste o water-proof dos tambéns!

Nem chegarás tão cedo 
à fábrica de tecidos dos teus êxtases; 
telefone: Além, 3991... 

Em Lira Paulistana, o poeta volta-se para o passado para compreender seu legado literário e encontrar na cidade de São Paulo um espelho para suas questões. Exemplo dessa identificação é o poema em que o eu lírico, antecipando sua morte, designa onde se devem enterrar partes de seu corpo: 

Quando eu morrer [...]
 
Meus pés enterrem na rua Aurora 
No Paiçandu deixem meu sexo 
Na Lopes Chaves a cabeça 
Esqueçam 

Tratando da morte, tema recorrente no livro, esses versos parodiam composições do romantismo, como “Se eu Morresse Amanhã” ou “Lembrança de Morrer”, de Alvares de Azevedo (1831-1852).

Exemplo da tendência reflexiva que se projeta na cidade é “A Meditação sobre o Tietê”, único poema do livro a receber título. Caracterizado por João Luiz Lafetá (1946-1996) como “testamento poético de Mário de Andrade”, o poema vale-se da imagem do rio Tietê como símile da vida e da atividade artística e intelectual do poeta1.

O rio, inicialmente convite ao confronto com os próprios sentimentos, torna-se imagem do destino do poeta: “Meu rio, meu Tietê, onde me levas? [...] / Me induzindo com a tua insistência turrona paulista / Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!”, pergunta-se o sujeito. Os versos fazem referência ao fato de que o Tietê volta-se para o interior do país, em vez de correr para o oceano. Aos poucos, compõe-se a noção de que o ofício poético é contraponto à indiferença e à injustiça social: “[água] Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas / Para o peito dos sofrimentos dos homens”.

Segundo Lafetá, o tom amargurado de “A Meditação sobre o Tietê” é exemplo da negatividade e da desconfiança que o autor manifesta nas décadas de 1930 e 1940 e contrapõe-se à “consciência eufórica” dos anos 1920. Cristalização desse ponto de vista é a conferência “O Movimento Modernista”, proferida por Mário de Andrade em 1942, no Rio de Janeiro. Segundo o escritor, a pesquisa estética e a consciência nacional são conquistas do modernismo brasileiro, mas “a atualização da inteligência artística nacional” falha: “E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amilhoramento político-social do homem”.

A reflexão é autocrítica: se, na década de 1930, o autor hesita diante de uma arte meramente engajada, sem preocupação com o apuro formal, na década de 1940, o empenho do artista torna-se valor central para Mário de Andrade. Essa mudança de perspectiva manifesta-se nos poemas de Lira Paulistana. Entre os motivos, estão: a dificuldade de ver para além de preconceitos e ideologias, projetada na metáfora que faz da fina chuva paulistana “timbre triste de martírios” (“Garoa, sai dos meus olhos”); a recusa da poesia superficial, que não retrate “o mal das almas” (“A palavra se inutiliza em brisas calmas”); a exploração do trabalho, presente no poema narrativo dedicado à história de Pedro (“Agora eu quero cantar...”); e a riqueza injustamente conquistada (em “Moça linda bem tratada...”). Há, também, o desencanto provocado pela Segunda Guerra Mundial, presente no poema dirigido a um aviador brasileiro lutando no combate (“Em pleno olho sem pálpebras dás morte, / Armado de morte, cercado de morte, amante da morte”).

Problematizar a realidade social brasileira não implica abdicar da procura por uma linguagem capaz de lhe dar forma. O autor recorre, por exemplo, a recursos tradicionais, como a repetição, para cantar os problemas contemporâneos com simplicidade e despojamento. É o que ocorre no poema sobre um filme do cineasta estadunidense Cecil B. DeMille (1881-1959): o refrão “Rei dos Reis”, repete-se e assume sentido específico em cada estrofe. 

Ao buscar a síntese entre pesquisa estética e interesse social, entre exterioridade e subjetividade, os poemas de Lira Paulistana mostram que Mário de Andrade sempre investiga a arte em geral e a poesia em particular. Se uma composição parece duvidar do valor mesmo da poesia – “Eu nem sei se vale a pena / Cantar São Paulo na lida” –, outra se afirma contra a brutalidade: “Abra-se boca e proclama / Em plena Praça da Sé, / O horror que o nazismo infame / É”. A despeito do desencanto com que o sujeito vê o mundo, o resultado é a necessidade de criação, como afirma o eu lírico no poema de abertura: “Minha viola quebrada, / Raiva, anseios, lutas, vida, / Miséria, tudo passou-se / Em São Paulo”.

Nota

1 O procedimento faz lembrar “Louvação da Tarde”, de Remate de Males (1930), em que um passeio de carro por uma rodovia do interior paulista torna-se tema e metáfora para o eu lírico refletir sobre a própria trajetória, como mostra Antonio Candido (1918) no ensaio “O Poeta Itinerante”.

Fontes de pesquisa 17

Abrir módulo
  • ALVARENGA, Oneyda. Mário de Andrade, um Pouco. Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: SCET-CEC, 1974.
  • ANDRADE, Mário de. Lira paulistana. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1945. Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos - BLPL, Florianópolis, [s.d.]. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=137419. Acesso em: 18 abr. 2022.
  • ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: _______. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins, 1974.
  • BERRIEL, Carlos Eduardo (Org). Mário de Andrade hoje. São Paulo: Editora Ensaio, 1990. (Cadernos Ensaio, série grande formato, v. 4).
  • BOSI, Alfredo. “O Movimento Modernista” de Mário de Andrade. In: BOSI, Alfredo. Revista Colóquio/ Letras, Lisboa, n. 12, mar. 1973, p. 25-33.
  • CANDIDO, Antonio. O poeta itinerante. In: CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010. p. 227-246
  • DASSIN, Joan. Política e poesia em Mário de Andrade. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
  • FACIOLI, Valentim. Mário de Andrade e a cidade de São Paulo: aspectos. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo, n. 50, p. 62-79.
  • FONSECA, Maria Augusta. Por que ler Mário de Andrade. São Paulo: Globo, 2013.
  • KNOLL, Victor. Paciente arlequinada: uma leitura da obra poética de Mário de Andrade. São Paulo: Hucitec: Secretaria de Estado da Cultura, 1983.
  • LAFETÁ, João Luiz. A dimensão da noite. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2004.
  • LAFETÁ, João Luiz. Figuração da intimidade: imagens na poesia de Mário de Andrade. São Paulo: Martins Fontes, 1986. (Leituras).
  • LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
  • LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminho. São Paulo: Duas Cidades, 1972.
  • MAJOR NETO, José Emílio. A Lira Paulistana de Mário de Andrade: a insuficiência fatal do Outro. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006, 275f.
  • SCHWARZ, Roberto. O psicologismo na poética de Mário de Andrade. In: SCHWARZ, Roberto. A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 1-11
  • SOUSA, Gilda de Mello e. A poesia de Mário de Andrade. In: A ideia e o figurado. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2005. (Espírito Crítico). p. 27-36

Como citar

Abrir módulo

Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo: